O AlGARVE COMO A GRÉCIA, A IMAGINAÇÃO COMO REALIDADE.

NORONHA, SOPHIA E A FADA ORIANA.

Nuno Faria

(Em memória da Ana Luísa Amaral)

Teremos de recomeçar tudo a partir do gregos,
isto é, a partir da fidelidade ao terrestre.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Apesar de em vários períodos da minha vida ter visitado e amado a obra de Sophia, não sou, manifestamente, seu profundo conhecedor. Assim, quando fui convidado para participar no ciclo de conversas Sophia e as Artes, fiz um exercício de rememoração dos artistas com quem trabalhei e cuja obra estudei que mantiveram relações de colaboração ou que foram próximos de Sophia de Mello Breyner Andresen.  

Um desses períodos aconteceu no Algarve, onde vivi durante seis anos da minha vida adulta e para onde fui em família ver crescer os meus filhos. Ali, no Sotavento Algarvio, demorei-me intensamente na poesia de Sophia, mas também li em voz alta os seus maravilhosos contos infantis, com prazer de pai e de leitor.  

Foi nessa terra que Sophia intensamente amou, e para onde também levava os filhos pequenos,que esta fotografia (Fig. 1) foi captada, algures nos anos 1960 — em Lagos, para ser preciso, pela lente de um desses artistas, também extraordinário fotógrafo, sobretudo retratista, João Cutileiro. Encontrei-a no arquivo do autor, em Évora, entre outros espantosos retratos de tanta gente e entre vários de Sophia. Foi usada por Manuel Rosa numa reedição de um livro de Sophia.

Fig. 1 — Retrato de Sophia de Mello Breyner Andresen por João Cutileiro, Lagos, circa 1960

Aqui em Lagos tenho vivido um Verão maravilhoso nesta luz mais que limpa, neste calor leve e doirado, nesta água verde e transparente e nas grutas invisíveis que são o mais espantoso barroco, roxas e doiradas por dentro. Em Agosto quando o mar estava liso como um chão e completamente transparente eu alugava uma chata e ia de gruta em gruta e nadava na gruta do leão e na “sala” e na “porta do sol” e na “Balança”, rodeada pelos pequenos e guiada por um extraordinário barqueiro, um pescador chamado José Vicente, que mergulhava para trazer do fundo ouriços, pedras e búzios e que nos ensinava o nome dos peixes e nos contava as mais fabulosas histórias de pesca. Este José Vicente tornou-se o ídolo dos meus filhos e ensinou-os a nadar debaixo de água, a saltar, a pescar. Acho este povo Algarvio maravilhoso de honestidade e dignidade e muito mais evoluído e consciente do que o povo do Norte. 


(Correspondência com Jorge de Sena, Lagos, Praia de Dona Ana, 22 de Setembro, 1961, pp. 38 e 39)

Fig. 2 — Sophia e Menez fotografadas por João Cutileiro, Praia da Dona Ana, Lagos, circa 1960

O Algarve era, nos anos 1960, para uma certa burguesia esclarecida, um lugar que não existia, uma espécie de paraíso fora da terra. Talvez o fosse também para Sophia, que se referia muitas vezes àquele lugar nestes termos: um vislumbre de Grécia, com burros estrada fora, o ar seco e o sol langoroso, o peixe de prata colhido da água tépida do mar, aquele mar único, no Barlavento, de onde se erguem rochedos como gigantes, como grutas, como grandes concavidades que guardam e aguardam por revelar os segredos das profundezas. 

Vim de Brindisi a Patras; mar azul, céu azul, ilhas azuis, golfinhos ao longo do navio. Entre Patras e Corinto, ao longo das montanhas e do mar, no ar perfumado de fruta e resina entre oliveiras e loureiros a mais bela paisagem que vi. Depois a solenidade indizível da Acrópole, grandeza esmagadora quando lá fui pela primeira vez sozinha no sol do meio-dia e pensando nos meus amigos distantes e presentes. 

 

(Idem, Bilhete postal, Atenas, 14 de Setembro de 1963, p.67)

 

O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. É uma natureza mitológica onde as montanhas e as ilhas têm um halo azul que não é imaginado, mas sim fenómeno físico objectivo que segundo me disse o Padre [Manuel] Antunes (que aliás imprevistamente encontrei no palácio Ducal de Veneza numa exposição maravilhosa do [Vittorio] Carpaccio) já era um fenómeno notado e discutido na antiguidade. Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. As enormes e constantes montanhas povoam tudo de solenidade. Cheira a resina e mel e há uma embriaguez austera e lúcida. Mas tanto como a natureza — e ligada à natureza — espantou-me a incrível religiosidade de tudo. 

 

(…) Na Grécia tudo é construído como religação do homem à natureza. Em Veneza e Florença a natureza pouco seria sem o que os homens construíram: o que há é cidade. Mas os termplos gregos só são compreensíveis situados no mundo que os rodeia. A ligação entre a arquitectura e o ar, a luz, o mar, os promontórios, os espaços é total. E essa ligação é simultaneamente racional e misteriosa, profundamente íntima.

 

Há também na Grécia uma atmosfera extremamente primitiva, um misto de doçura e de austeridade, de afinamento exacto e de rudeza. E uma identidade entre o físico e o metafísico. 

(…) O que eu sabia da Grécia adivinhei-o através de pedras, pinhas, resinas, água e luz. Mas apenas como fragmentos dispersos que a minha imaginação reuniu. Ali encontrei as coisas todas inteiras e presentes na sua unidade. Não estou a falar só das coisas, mas da ligação do homem com as coisas. 

 

(Idem, Abril, Maio de 1964, pp. 68-70)

A história que trouxe sobre o encontro quão fecundo de dois imaginários, o de Luís Noronha da Costa e o de Sophia, é contada através do cinema e da Natureza — não tanto da tematização da natureza mas da natureza como ecrã de projecção, como fulgurância da imaginação, como lugar onde se inventam histórias aéreas e aquáticas e de onde brotam mundos e fundos.

 

Este texto, esta fala, que tem como cenário o projecto fílmico desconhecido (e jamais realizado) de Noronha sobre a Fada Oriana de Sophia — “uma fada muito bonita que recebeu da Rainha das Fadas o encargo de tomar conta da Floresta com todos os seus habitantes: homens, animais e plantas”—, tomou rumo com o despertar da memória de uma filmagem feita num lugar no Algarve, nas cercanias de Portimão: a praia abaixo da casa projectada e construída sobre as falésias do Carvoeiro por Luís Noronha da Costa — que, para além de artista e cineasta, era também um notável arquitecto.

Fig. 3 — Casa do Carvoeiro. Projecto da autoria de Luís Noronha da Costa

É a memória de um momento mágico vivido — sonhado? — numa sala da Fundação Calouste Gulbenkian quando, algures em 2002, eu e Miguel Wandschneider preparávamos a antológica dedicada a Luís Noronha da Costa que veio a acontecer em 2003 no Centro Cultural de Belém. 

 

Luís Noronha da Costa era, em 1969, aos 27 anos, não é despiciendo recordar, o artista mais consensual do panorama artístico nacional. Louvado por todo o espectro crítico da arte portuguesa, de José Augusto França a Ernesto de Sousa, Noronha foi entronizado como maior pintor português contemporâneo quando, nesse ano, na Galeria Quadrante, realiza a notável exposição Magritte Após Polanski, em que mostra uma série de grandes pinturas sobre madeira que representam planos de mar e céu parcialmente velados por ecrãs difusos.

Fig. 4 — Páginas do catálogo da exposição antológica “Noronha da Costa Revisitado 1965-1983”, CCB, 2003

Tudo em Noronha, embebido em sensibilidade romântica, ou neo-romântica, como dizia, era excessivo. Tudo era vertido pela natureza, ou uma certa sensibilidade à natureza que se confundia com cegueira, perda de visão ou um ver interior tão próprio dos pintores e poetas românticos, do idealismo alemão, que ele amava acima de todos, ou nos quais era viciado. A constelação de autores aprofundadamente estudados por Luís Noronha da Costa cobria um amplo território pluridisciplinar de afinidades românticas: as pinturas de Caspar David Friedrich, o barroco da Baviera, os Palácios de Ludwig II, a obra completa de Heidegger, os vampiros de Roman Polanski, a pintura fotográfica de Gerhard Richter, a poesia de Hölderlin, entre muitas outras. 

 

Mas voltemos a 2002, em Lisboa, no Centro de Arte Moderna. Para preparar a exposição, mas também o ciclo de cinema paralelo na Cinemateca Portuguesa, estávamos, eu e o Miguel, a ver bobines de filmes perdidos de Noronha da Costa com um projeccionista pedido de empréstimo à Fundação Calouste Gulbenkian, quando, no começo de um dos vários rushes, um plano desfocado, ou difuso, como o artista fazia questão de esclarecer, nos chamou a atenção. O filme, com cerca de três minutos, consistia num movimento progressivo e lentíssimo de aproximação a algo que dificilmente se descortinava. No início distinguiam-se apenas manchas, em três planos – amarelo do chão, castanho escuro ao centro, azul do céu. E uma mancha vermelha que, com a aproximação da câmara em plano-sequência, começava a ocupar a maior parte do plano e a tornar-se cada vez menos difusa. A focagem, insinuando-se lentamente, tornava-se cada vez mais discernível até que no centro da imagem surgia uma mulher de fato de banho vermelho vivo. Plano aproximado. “É Sophia”, dizemos entusiasticamente em uníssono! E um de de nós acrescenta: “é imperioso mostrar este filme na exposição juntamente com a galeria de retratos de mulheres”. Corte. Bobine recuperada pelo autor (cavalheirismo oblige). Nunca mais pudemos ver o filme. 

 

Neste movimento de aproximação visual testemunhamos o sereno milagre da intimidade de dois universos autorais que são mais próximos do que uma leitura superficial deixa revelar.

 

A casa de Noronha, no Carvoeiro, lugar impossível, que não existe — a casa e o Algarve. Visão do mar para contemplar a Floresta Negra. Vidraças amplas, lareira ligada no Verão ao som de O Anel de Nibelungo, de Wagner. Tudo em Noronha era excesso, tudo era desmesuradamente, intensamente percepcionado.

Eu sou mais alucinada do que tu: creio que é possível que o nosso ser coincida com os seres. E se assim não acontece é por erro nosso porque não estávamos suficientemente atentos, e algumas vezes porque, por falta de fé dum momento, não ousámos acreditar no que reconhecíamos.  

 

(Idem, Lisboa, 18 de Novembro de 1969, p. 106)

Conhecemos bem as colaborações de Sophia e Noronha em torno dos inesquecíveis livros de histórias para crianças que a escritora criou. Mas desconhecemos a história de um maravilhoso desencontro no quadro de um projecto de filme de Noronha a partir do conto A Fada Oriana, de Sophia.

 

O projecto, com um orçamento inicial de 900 mil escudos, foi aprovado pelo Instituto Português de Cinema, em 1977, no contexto do programa de apoio a primeiras obras, não chegando nunca, contudo, por diferentes ordens de razões, a realizar-se.  

Em primeiro lugar, e nas palavras do autor do filme,

pela impossibilidade verificada por mim, após consultas técnicas aprofundadas, de realizar o filme dentro do orçamento disponível, uma vez que a transposição da obra literária para o cinema exige meios que em muito superam este orçamento, havendo ainda a considerar as características da obra servindo de base ao mesmo filme e cuja qualidade não permite exageradas manipulações que logo apareceriam como outras tantas manipulações, atentando contra o sentido e o significado daquela.
       Por outro lado, o recurso a financiamentos exteriores ao Instituto Português de Cinema pareceria coadunar-se mal com o carácter de primeira obra assumido pelo projecto fílmico de minha autoria. 
E isto, quanto à segunda ordem de razões. A autora do livro em que se baseava a realização cinematográfica ambicionada, Sophia de Mello Breyner Andresen, exprimiu entretanto o seu pleno acordo comigo no referente ao assunto em causa, pelo que a questão se poderia considerar liquidada nesse plano. Ambos esperamos, todavia, poder mais tarde concretizar a almejada realização que gostaríamos de considerar, apenas, adiada”. 

       Oferece-me, todavia, propor o seguinte à Comissão Administrativa do IPC. Considerando que o subsídio concedido permanece disponível, visto haver sido atribuído a um autor para uma sua primeira obra, eu proporia que esse mesmo subsídio fosse transferido para um outro projecto. 

       Trata-se de uma obra provisoriamente intitulada “O Construtor de Anjos”, pertencendo ao género chamado de “filme de terror”. É meu desejo, antigo já, proceder à exploração dessa região, dentro de uma temática de raiz nacional. Trata-se de um filme que procura descobrir o fantástico a partir de um espaço abandonado (convento em Sintra) e das sugestões da própria região e serra de Sintra, criando uma situação que se localiza no século XIX, embora sem a intenção de reconstituição histórica. Um dos objectivos fundamentais seria, portanto, de revelar as virtualidades de um determinado espaço português no campo do filme de imaginação, campo esse praticamente inexplorado no nosso cinema. Tratar-se-ia de uma média metragem de cerca de 30 minutos em 16 mm, cor, ou eventualmente 35 mm, com argumento de minha autoria e texto e diálogos de Nuno Júdice.

 

(Carta de Luís Noronha da Costa à Comissão Administrativa do Instituto Português de cinema, datada de 15 de julho de 1978)

Fig. 5-7 — Páginas do catálogo da exposição antológica “Noronha da Costa Revisitado 1965-1983”, CCB, 2003

Do filme “A Fada Oriana” temos, para memória futura, o Projecto de Argumento” e um pequeno mas assombroso conjunto de pranchas preparatórias do guião e storyboard do filme, em que se revelam a minúcia e obsessão para com os detalhes, bem como, concomitantemente, a poética visual, totalmente vinculada à obra pictórica e escultórica de Luís Noronha da Costa, mas sobretudo um pensamento fenomenológico de matriz heideggeriana com raízes profundas na filosofia materialista dos pré-socráticos. 

Paradoxalmente, o poema de que mais gosto é “Deixa os gregos em paz”, embora realmente eu creia que teremos de recomeçar tudo a partir dos gregos, isto é, a partir da fidelidade ao terrestre. Creio que o grande mal português será que sempre deixamos os gregos em paz. Por isso somos um país que não se reconhece. Um país que julga que a austera, apagada e vil tristeza é a condição do homem. Fomos um país de grandes navegadores — mas nunca tivemos em frente do mundo aquele sorriso de espanto que tinham as estátuas dos navegadores jónicos. (…) E quer tendo Homero, quer tendo a terrível Guerra do Peloponeso, quer tendo a Retirada dos Dez Mil, vemos que de grego foi ter estado mais no mundo em que estamos, e que os gregos eram gregos com uma veemência anterior à decadência da vida. Uma veemência como a das cigarras a cantar no calor de Delphos. De qualquer maneira, sinto-me muito heideggeriana. (Meu sublinhado)

 

(Correspondência com Jorge de Sena, Lisboa, 18 de Novembro de 1969, p. 105)

fig. 7-10 Pranchas do storyboard e guião do projecto de filme “A Fada Oriana”, da autoria de Luís Noronha da Costa.

A visualidade e a plasticidade próprias do universo artístico de Luís Noronha da Costa, podemo-lo confirmar nos desenhos realizados pelo autor para o storyboard de A Fada Oriana, teriam amplificado, feito ressoar e levado para territórios ainda mais obscuros a complexidade do imaginário de Sophia, raramente exposto com tanta liberdade, e por isso alucinação, como nos contos infantis da autora.

 

O encontro de Sophia e de Noronha é o encontro de dois visionários inebriados pela natureza elusiva da natureza e obcecados pela mediação poética com o mundo. E em incessante busca de um modo de dizer, de dar a ver “aquilo que não pode ser agarrado” no sentido em que Sophia falava, a propósito de um poema de Jorge de Sena, “sobre o mistério das palavras que tocam o limiar do inomeado”. 

 

Talvez naquele curto filme estivesse já imanente mas escondida a distância irreparável, o encontro fatalmente em paralaxe de dois imaginários tão próximos. É que na expressão poética de Sophia tudo é lúcido, e em Noronha tudo é opaco. Não é só uma questão de luz, de que ambas as obras se alimentam em abundância, eu diria mesmo, em substância, é também uma questão de destino: um luminoso, o de Sophia, outro maldito, o de Noronha.

Amílcar Vasques-dias