1. Das formas – de estar, de fazer e de ver
Há cerca de um ano, Maria Andresen de Sousa Tavares telefonou-me a dizer que eu ia ser contactada pelas organizadoras de um ciclo de palestras sobre Sophia. Fiquei perplexa, mas um dizer da prima mais velha é uma ordem. Uma das imagens mais antigas que conservo é, na casa de meus pais na Granja, no quarto da nossa avó, a Maria sentada no chão a ler um livro poisado na cama enquanto a luz do sol entrava pela janela. Isto terá acontecido nos princípios da década de 1960. Tenho como condição ser a neta, quase a mais nova, dos pais de Sophia – Maria e João Andresen. Os dez anos que me separam da minha prima mais velha, a Maria, são cada vez mais estreitos, e a admiração continua crescente, reforçada por um sentimento de gratidão.
Não será fácil ser filha de Sophia. Será uma distinção, será uma responsabilidade, mas também uma constante inquietação. Mas que tranquilo foi ser sobrinha de Sophia, simplesmente amiga de Sophia. Sinto que entre mim e Sophia prevaleceu um entendimento feito de cumplicidade, sobretudo cultivado em conjunto na observação do silêncio. Tínhamos quase 40 anos de diferença. Mas se foi tranquilo ser sobrinha de Sophia, não sinto que, hoje e particularmente aqui, seja tranquilo ser sobrinha de Sophia. Inquieta-me perceber que durante quase seis anos partilhámos o quotidiano, a vulgaridade ritual do quotidiano entremeada de atenção dirigida para o mais importante, o mais belo (o melhor vinho, o mais saboroso, a melhor vista, o mais alegre, o mais justo), mas também o mais indigno. Era eu estudante universitária e vivia em casa de meus tios Sophia e Francisco Sousa Tavares. Tinha consciência do ambiente excecional daquele espaço. Em casa dos meus tios, o mundo entrava pela porta dentro: pelo que se dizia, pelo que se confrontava, pelo que se escrevia e pelo que vinha através daqueles que chegavam carregados de mundos diversos. Havia deslumbramento, havia desassombro, havia combate, havia a ideia de que algo estava sempre para acontecer e que tudo podia acontecer.
De entre as várias sessões que constituem este ciclo Sophia e as Artes, as organizadoras convidaram-me para falar de “Sophia e a Forma”. Ora, a forma não é uma arte. Como escreve Ricardo Reis /Fernando Pessoa, em Prosa, “A arte baseia-se na vida, porém não como matéria, mas como forma. Sendo a arte um produto directo do pensamento, é do pensamento que se serve como matéria; a forma vai busca-la à vida. A obra de arte é um pensamento tornado vida: um desejo realizado de si mesmo. Como realizado tem que usar a forma da vida, que é essencialmente a realização; como realizado em si mesmo tem que tirar de si a matéria em que realiza.”
Então, perguntei-me, o que pretendem as organizadoras? E porque escolheram de Sophia os seguintes versos: “Se nada adoecer a própria forma é justa / E no todo se integra como palavra em verso”? Não há verso sem palavras, não há todo sem forma. A forma – a própria forma – é justa (se nada adoecer …) e se integra no todo, tal como a palavra se integra no verso. O verso é o todo.
Tudo é forma, afinal. Mas sem espaço não há forma. Forma – a área ou o volume que os objetos no espaço definem. Dizemos que as formas podem ser orgânicas ou geométricas. Orgânicas são as formas que associamos à natureza e que tipicamente são irregulares e assimétricas. Geométricas são as formas que associamos mais aos objetos contruídos ou fabricados, tipicamente funcionalistas ao serviço das necessidades humanas, e correspondem a formas regulares como o quadrado, o retângulo, o círculo, o cubo, a esfera, a pirâmide, o cone… Mas nem todos os objetos fabricados ou construídos são geométricos. E a natureza também é geométrica – basta pensar nas formas cristalográficas.
Dei então comigo a pensar na etimologia da palavra forma. Nos seus sinónimos. Nos modos/formas como uso a palavra.
Forma, formato e fórmula
Formação, deformação e transformação
Formatação
Fórmula e formulação
Forma e figura
Formar e figurar não são sinónimos. Mas conformar e configurar já são palavras que se usam indistintamente.
E ainda:
Morphologia ou o estudo das formas que a matéria pode tomar.
Morfologia das plantas; o estudo das formas das plantas. Morfologia animal. Morfologia gramatical – sim, morfologia é também o estudo da forma das palavras nas áreas da linguística e da gramática. As formas são bidimensionais e tridimensionais. A pintura é bidimensional. A escultura é tridimensional. A representação da forma está na base da criação artística e da produção de imagens. Em latim “imago” significa representação visual.
A dualidade entre o pensamento de Platão e Aristóteles é coisa antiga e raiz da nossa civilização. Uma dualidade que deu origem e continua a dar lugar à controvérsia no domínio do conhecimento – o idealismo e o realismo. Sob o ponto de vista da representação visual, com quase séculos de intervalo, a idade moderna trouxe-nos a imprensa (1439) e a fotografia (1826) que vieram revolucionar tanta coisa, nomeadamente o nosso modo de ver. E hoje temos a dualidade do analógico e do digital. Este abriu-nos possibilidades inimagináveis e indizíveis há escassos 30-40 anos (uma parte mínima de micro-segundo na história do universo e uma parte mínima de segundo na história da humanidade, uma parte muito pequena na história da modernidade …).
E pensei ainda em como também recorremos a outra dualidade para descrever as formas: realistas/naturalistas e abstratas. Nestas – nas abstratas – a forma também existe e é realista mas não é evidente. Também tem a ver com o figurativo e o não-figurativo. Sabemos ainda dos fatores que afetam a nossa perceção da forma e da obra de arte, nomeadamente a importância do contexto – dos muitos contextos da forma e do objeto e dos contextos do observador. E, claro: da luz!
A forma está em tudo. A forma está em todas as artes. A forma é transversal. À música. À pintura. À escultura. À arquitetura. À poesia. Sophia tem o culto da forma, da forma como meio ou condição para que as coisas sejam perfeitas e justas e para que haja unidade. É que, para Sophia, a poesia é a arte de ser, de ver, de viver. Para mim, o modo como em prosa ou poesia Sophia nos ensina / nos conduz a ver é um modo sempre justo, atento e revelador. Sobretudo, há em Sophia uma arte singular de revelar o que é simples e belo. Limpo e claro. Justo e verdadeiro. Sophia ensina a ver o mundo. Sophia ensina a ver o essencial do mundo. Em Sophia só há lugar para o mais importante, para o essencial, para o verdadeiro. Por isso, em “Arte Poética III”, ela escreve: “A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”
Quer na poesia quer na prosa, a forma tem em Sophia uma forte presença e expressão, em particular quando se refere à escultura mas também à arquitetura: à casa, ao jardim – e à casa e ao jardim.
2. Do cultivo das formas: o mundo, um jardim
Ana Luísa Amaral disse-me que eu estaria do lado dos oradores que se “dedicam às artes” pelo que pedia que falasse da arte a que me dedico e, caso quisesse que a ilustrasse com o que conhecia da obra de Sophia. O seu mail confrontou-me com uma questão que eu ainda não me tinha colocado: mas afinal eu sou uma artista? Eu vejo-me como uma artista? De que arte vou falar? Da arte de projetar o espaço e a paisagem? Da arte de ordenar a paisagem? Da arte de jardinar? Sophia não jardinava; mas sabia de jardinagem. Conhecia as flores pelo nome. Sophia, contrariamente ao que vulgarmente se diz, tinha noções muito práticas das coisas e das tarefas quotidianas e tomava decisões obsessivamente orientadas pelo que era mais importante e pela rejeição do supérfluo. Um dia explicou-me o significado da palavra obsceno – o que não era digno de ser representado em cena.
A sua forma de cultivar o jardim em poesia ou em prosa vinha-lhe da infância passada num jardim – o da casa de seus pais na rua António Cardoso e o da casa de seus avós paternos na rua do Campo Alegre, no Porto. Uma jornalista que escreveu uma peça no âmbito do centenário procurou-me e percorri com ela a rua António Cardoso, no Porto onde Sophia nasceu há cem anos. Mobilizei memórias transmitidas por Sophia e pelo meu pai, o irmão mais novo de Sophia. Eu ia-lhe falando dos jardins, das flores, dos frutos, da horta, do pinhal, e ela perguntava-me “mas porque é que esta família está sempre a falar de jardins?” E eu tomei consciência de que a maioria das famílias não seriam assim, mas também não sabia dizer por que era assim na família de Sophia, na família de meu pai. “Lá em nossa casa era assim. Foi sempre assim. E assim era no Campo Alegre e também na casa de meus avós maternos, no Porto oriental, em Campanhã.”
A minha formação académica de base vem da engenharia agronómica e da arquitetura paisagista. Hoje e aqui, preciso de vos dizer que reconheço que faço parte de um grupo privilegiado de criaturas que nasceu num vasto quintal, um amplo espaço de cultivo onde uma enorme pereira e uma tília pontuavam com um pinhal ao fundo, já depois do muro. Mais tarde, minha mãe – que era uma artista da música – fez evoluir parte desse quintal para um jardim. Aqui me fiz jardineira ao lado de minha mãe. Mesmo que não se jardine mais tarde na vida, se se jardina na infância, fica-se jardineira toda a vida. Este é o grande cenário da minha infância, próximo do mar da Granja, onde também a presença da minha avó, a mãe de Sophia, marcou particularmente os meus dias até aos 10 anos de idade. Hoje, continuo a jardinar.
Era assim. Vivia-se no jardim. Cultivava-se o jardim. Jardinava-se. Pintavam-se e bordavam-se flores. Faziam-se jarras de flores e às vezes de frutos – arranjos florais era coisa que não existia. Ofereciam-se flores. Davam-se a provar os frutos e os legumes da horta. Ia-se visitar a horta e as novidades. Ia-se à mata ou ao pinhal …
O jardim de Sophia, em Lisboa – desenhado pelo amigo Gonçalo Ribeiro Teles – era pequeno. Ficava um andar abaixo e acedia-se a ele a partir de uma varanda com escada. O jardim era também uma varanda para a cidade e para o Tejo, cheio da luz do poente, sendo simultaneamente intimista – virado para si, para dentro. Escreve Sophia, em “Nocturno da Graça” (p. 398):
Há um rumor de bosque no pequeno jardim
Um rumor de bosque no canto dos cedros
Sob o íman azul da lua cheia
O rio cheio de escamas brilha.
Negra cheia de luzes brilha cidade alheia.
Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade.
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Por isso, a única unidade é feita de duas partes: a casa e o jardim. Tal como a forma, a unidade é justa e é perfeita. Sophia trouxe um contributo imensurável para a nossa literacia visual. O nosso desejo de compreender o universo recorre muitas vezes a dois processos: simplificação e sistematização.
A complexidade do universo ou da natureza humana são difíceis de compreender embora exerçam um enorme fascínio sobre nós. São sistemas de equações com muitas variáveis e algumas incógnitas, na maior parte das vezes só ao alcance de poucos. Porém, há realidades porventura menos complexas que estas duas, mas que mantêm complexidade mais alcançável; e que são igualmente fascinantes. Refiro-me ao jardim.
A complexidade de um jardim tem graus diferentes e muitos pontos de vista. Um jardim é uma representação do mundo e, ao mesmo tempo, contem muitos mundos – incluindo o mundo de cada um. Do que o passeia, do que o contempla, do que o jardina, do que simplesmente o ama. No jardim coexistem todas as formas. Formas naturais e formas construídas complementam-se e tornam-se unidade. Até a sombra tem forma. No jardim há muitas formas para serem lidas …. No jardim, as formas transformam-se. Como as formas, também nós nos transformamos no jardim. “Fazer versos é estar atento”, escreveu Sophia. Eu acrescentaria que fazer ou cuidar de um jardim é estar atento. A arte do cultivo perpetua um conhecimento antigo, como a arte da poesia perpetua um conhecimento antigo. Creio que podemos mesmo dizer que são duas artes, dois conhecimentos, igualmente antigos. Diria mesmo que são mais do que antigas, são ancestrais. Fazem parte do princípio.
Recordemos que, para Kant, a arte do jardim fazia parte das belas artes que eram três: a arte do discurso; as artes visuais e a arte do jogo da sensação. A arte do jardim aparece associada às artes visuais, ao lado da pintura, enquanto que a arquitetura aparece ao lado da escultura. E no século anterior a Kant, ou seja, no século XVII, em Inglaterra, tinha-se introduzido e disseminado o gosto pelos jardins franceses e holandeses que hoje referimos como formais/cartesianos/geométricos, inspirados nos jardins da renascença italiana.
Porém, o século XVII inglês foi atravessado por uma profunda ‘antipatia’ política por qualquer influência francesa em território inglês que vai dar origem a uma reação vigorosa ao formalismo que foi determinante para a definição do gosto e que levou à emergência contagiante de uma nova atitude na apreciação da natureza. Emergiram então intensos debates sobre o ‘belo’ e o ‘sublime’. É nesta circunstância que nasce o chamado ‘jardim paisagístico’ que se deve sobretudo a William Kent (1685-1748). Kent era pintor e introduziu nas grandes casas de campo inglesas ribeiros serpenteantes, caminhos sinuosos, campos e pastagens, maciços de árvores e um amplo sistema de vistas dirigido para pontos de referência como pequenos templos. A composição do jardim era extraída diretamente das paisagens ideais pintadas por Claude Lorrain ou dos poemas de James Thompson (The Seasons, 1746).
O jardim torna-se uma composição pictórica ou poética. O século XVIII é particularmente inovador. A sua segunda metade foi dominada pela genialidade de Capability Brown (1716-1783) consumada em Blenheim. O jardim paisagístico perpetua princípios básicos da arte do jardim, incluindo a submissão da natureza aos objetivos do ser humano – o naturalismo alcançado era afinal tão artificial como no cartesianismo aplicado ao jardim. A dualidade é intrínseca à arte do jardim. Tudo isto corresponde a um novo modo de apreciar a natureza e de aproximação à natureza num tempo já sem Deus e em que o mecanicismo primava. A nova tendência percorreu toda a Europa, incluindo a França (Ermenonville) onde justamente Rousseau se torna um arauto do regresso à natureza, repudiando o primado de uma visão mecanicista do universo. No romance Julie ou La Nouvelle Héloise (1760), o jardim de Julie é cultivado apenas com o intuito de despertar sentimentos naqueles que o visitam procurando o afastamento da sociedade. Enfim, o regresso à natureza! O Eliseu de Julie deixa de ser um jardim paisagístico.
No século XIX, tudo vai seguir outro percurso fazendo prevalecer no jardim o desenvolvimento do gosto pela horticultura. Mas, a dualidade do jardim perpetua-se, dilui-se de alguma forma sob a apreciação e curiosidade pelas plantas, pelas coleções de plantas, pelo exotismo, pelo pitoresco.
Nestes nossos séculos XX e XXI, cada vez vivemos mais afastados da natureza. Mas Sophia está sempre a aproximar-nos dela. Sophia cria lugares – geralmente reais podendo ser mais ou menos ficcionados para que se tornem mais justos (justo de justiça e justeza). Estes lugares, na prosa – sobretudo nos contos para a infância – e na poesia oferecem a possibilidade de nos compreendermos a nós próprios e ao mundo em que vivemos. Sophia leva-nos ao essencial. Nós descodificamos, apreendemos melhor e apropriamo-nos de uma nova visão do mundo.
É que a arte antecipa. E devia ainda antecipar. Mas a arte que hoje se faz parece-me demasiado obsessiva com a necessidade de compreender do artista, tornou-se redutora, para mim – não sei o que anuncia. Ou talvez saiba e… não gosto. Tenho medo. Também os jardins – os jardins antigos – estão a ser profanados, pois nós, ignorantes e pobres de espírito, ‘disneylandamos’ os jardins. Que diferença para a forma como Sophia deles fala! Não conheço melhor descrição do jardim/lugar português do que a abertura em O Jantar do Bispo de Sophia. Com ela termino:
A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um pátio quadrado. À direita havia um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. À esquerda era o jardim de buxo, húmido e sóbrio, com suas camélias e bancos de azulejo. A meio da fachada que dava para o pátio havia uma escada de granito coberta de musgo. Em frente dessa escada, do outro lado do pátio, ficava o grande portão que dava para a estrada. A parte de trás da casa era virada ao poente e das suas janelas debruçadas sobre pomares e campos via-se o rio que atravessa a várzea verde e viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos em certas tardes ficavam roxos. Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra mais rico é o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia. À direita entre a várzea e os montes, ficava a mata, a mata carregada de murmúrios e perfumes e que os Outonos tornavam doiradas.