[Uma homenagem a Sophia, mas sobretudo uma homenagem à Arte da Poesia, que ela é]
j’ai voulut dire ce que cela dit
(Rimbaud) [1]
1 «Quis dizer o que isso diz». Resposta de Rimbaud à mãe quando ela lhe perguntou o que queria ele dizer com Une saison en enfer... (registado por Paterne Berrichon). Salvo indicação em contrário, todas as traduções são minhas.
Tive a honra e o gosto de fazer parte do júri que em 1999 atribuiu o Prémio Camões a Sophia de Mello Breyner Andresen pelo conjunto da sua obra e pelo seu contributo para o enriquecimento do património literário e cultural da língua portuguesa. Os membros do júri, três intelectuais brasileiros e três portugueses, não tiveram dificuldade em chegar a acordo: poucos poetas da nossa língua souberam tão bem descobrir o nome das coisas como Sophia. Ler-lhe a escrita é entender duas diferentes concepções de linguagem: a que encontramos na Bíblia e a que encontramos no Alcorão. Na Bíblia, como muito oportunamente notou Jacques Derrida, Deus concede aos humanos o poder de nomear animais e coisas e, por isso, o poder de dominar e subjugar animais e coisas; é decerto desse imperial gesto inicial que resulta a espoliada natureza em que hoje nos encontramos a viver (Derrida 2006; cf. Génesis I, 26-30; II, 5-24). No Alcorão, ao contrário, é privilégio dos humanos aprender de Quem-Tudo-Sabe os nomes de animais e coisas (II, 29). Embora o bispo D. António Ferreira Gomes tenha exaltado eloquentemente o «conteúdo cristão na eidética e noética de Sophia», ao ouvido desta leitora é mais audível na obra da poeta uma voz corânica (Gomes 1997: 38). Como observou já Silvina Rodrigues Lopes, em Sophia nomear não implica definição, é antes descoberta (Andresen 1989: 28-32). Confessa Sophia em «Arte poética V» que a princípio «nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas (…) julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio» (1996: 349). Quem alguma vez leu Ralph Waldo Emerson não pode deixar de recordar aquilo que o poeta e pensador de Concord escreveu no seu ensaio sobre «o poeta». Em «The Poet» (1844), diz Emerson:
É que a poesia foi toda escrita antes que houvesse o tempo e, sempre que conseguimos entrar nesse lugar onde o ar é música, ouvimos os gorjeios primevos e tentamos reduzi-los a escrito, mas uma vez por outra escapa-nos uma palavra ou um verso, e então introduzimos algo da nossa lavra, e eis que assim nos sai mal o poema.
[For poetry was all written before time was, and whenever we are so finely organized that we can penetrate into that region where the air is music, we hear those primal warblings and attempt to write them down, but we lose ever and anon a word or a verse and substitute something of our own, and thus miswrite the poem. (1957: 224)]
Na poesia de Sophia, as palavras que dão forma aos seus poemas são as palavras que a poeta, decerto a pensar no «sentido mais puro» de Mallarmé, se empenha em despir da roupa da literatura para, como ela escreve no poema «O jardim e a noite» (1944 [ed.ut. 1995: 20-21]), «lhes dar a sua forma primitiva e pura».[2] É dessa forma originária que as palavras encerram, ao inevitavelmente se disporem, necessárias, no poema, que falo hoje aqui. Sophia sabe, como todo o grande poeta sabe, que, num poema, é preciso que cada palavra seja absolutamente necessária e esteja no sítio certo. Assim mesmo o disse ela numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos em 1991. [3]
Mas antes, uma pequena digressão ilustrativa.
Um dos últimos livros de poesia do grande poeta, e sempre sarcástico desconstrutor, Alberto Pimenta, intitulado Zombo (2019: 115), termina com um «Soneto errático». Assim:
SONETO ERRÁTICO
Com duas caudas
(codas, para gente distinta)
foi já há muito tempo
mas eu não lamento
eu não lamento
o pouco
tempo
que foi.
pois é
parece que
lamentar esse
tempo que se diz
pouco fá-lo maior
mas já não é o que foi
só finge ter sido mas não é.
2 Em «Poesia e revolução», apenso a O nome das coisas (1977), Sophia faz expressamente referência ao «Tombeau de Edgar Poe», onde Malarmé fala do poeta como «o anjo» que deu «un sens plus pur aux mots de la tribu».
3 Cf. «Sophia: a luz dos versos». Entrevista de José Carlos de Vasconcelos, JL nº468, 25 de Junho-1 de Julho de 1991.
No breve texto que sobre este livro escrevi para o JL, e que fiz rematar justamente com este poema, o «Soneto errático» apareceu assim reproduzido, certamente por questões de economia jornalística:
«Soneto errático»/Com duas caudas/(codas, para gente distinta)/foi já há muito tempo/mas eu não lamento/eu não lamento/o pouco/tempo/que/foi./pois é/parece que/lamentar esse/tempo que se diz/pouco fá-lo maior/mas já não é o que foi/só finge ter sido mas não/é (Ramalho 2019).
O resultado da transformação que o poema de Alberto Pimenta a fechar Zombo sofre quando citado no texto por mim publicado no JL merece alguma reflexão. A verdade é que o «soneto errático» de Alberto Pimenta não subsiste sem a forma que o poeta lhe deu ou, mais bem dito, sem a forma que o poeta lhe descobriu, incluindo as duas bem destacadas codas, isto é, para gente menos fina, as duas caudas («foi» e «é»). «Traduzido» em mera comunicação, como decerto diria Walter Benjamin, ou seja, reduzido a mero conteúdo, o poema deixa de existir enquanto tal (cf. Benjamin 1969: 69-82). O poema deixa de existir enquanto poema «íntegro». Por poema íntegro não vejo que possa entender-se outra coisa senão o poema que não suscita a famigerada distinção entre forma e conteúdo.
Disse Blake em The Marriage of Heaven and Hell (1793) que o maior erro de todos os códigos sagrados foi distinguir o corpo da alma (Blake 1965: 34). Muito mais tarde, Fernando Pessoa haveria de sublinhar, com evidente aprovação, o “contrário” blakiano desse erro fatal:
O Homem não tem um corpo distinto da Alma pois que isso a que se chama Corpo é uma parte da Alma apreendida pelos cinco Sentidos, os principais acessos à alma neste tempo
[Man has no Body distinct from his Soul for that calld Body is a portion of Soul discerned by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age]
Não admira que o nome de William Blake, juntamente com o de Walt Whitman (outro poeta que ostensivamente nega a nefasta distinção entre corpo e alma), apareça nos apontamentos de Pessoa sobre o sensacionismo. No rascunho de uma carta escrita em francês, provavelmente datada de 1915 e aparentemente destinada a ser enviada a Marinetti por Álvaro de Campos, o poeta apresenta-se como o único e verdadeiro «Sensationiste» (no original escrito com maiúscula, em itálico e entre aspas), ao mesmo tempo que indica Blake e Whitman como os seus antepassados neste particular (Pessoa 2009: 337). Em outra carta, agora em inglês e presumivelmente destinada a um editor em Inglaterra, Pessoa explica que, na poesia dos «sensationists» (entre aspas no original), «o espírito e a matéria se interpenetram e inter-transcendem» (Pessoa 1966: 126-133). Espírito e matéria? Ou forma e conteúdo? Vale a pena voltar ao inspirador «Poeta» de Emerson:
(…) o que faz o poema não é a métrica, mas uma ideia que faz métrica – um pensamento tão apaixonado e tão vivo que, tal como o espírito de uma planta ou de um animal, tem uma arquitectura muito própria, adornando a natureza com algo novo. (Emerson, «The Poet»: 184)
[(…) it is not meters, but a meter-making argument that makes a poem, – a thought so passionate and alive that like the spirit of a plant or an animal it has an architecture of its own, and adorns nature with a new thing. (225)]
Que é como quem diz, se a ideia não trouxer consigo a forma, não haverá poema digno desse nome. Por isso se insurgiu Susan Sontag, em ensaio célebre, contra a interpretação que assenta na «ilusão» dessa «distinção entre forma e conteúdo», ao mesmo tempo que busca o que o poema «quer dizer», esquecendo o que o poema «é» (Sontag 1966: 12-23; cf. Ramalho-Santos 2017: 226-234). Em português, talvez tenha sido Clarice Lispector quem melhor expressão teórica deu a este velho problema:
Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e do outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem a sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, do próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir em sua forma adequada e às vezes única. (Lispector 1999: 254-255)
Em «Métrica», de O búzio de Cós (1997), dá Sophia expressão poética a esta mesma ideia:
O poema clássico compõe seu contraponto olímpico
Entre o fogoso sopro e o vasto espaço da sílaba medida
Inventa a ordem sem lacuna onde nada
Pode ser deslocado ou traduzido (Andresen 2004: 9)
O «fogoso sopro» e a «sílaba medida», ou vida e poesia, juntos, são «ordem sem lacuna». Sophia disse, numa carta a Jorge de Sena datada de 10 de Junho de 1963, que não via razão para escolher entre a poesia e a vida porque ambas lhe pareciam a mesma coisa (cf. Andresen/Sena 2006: 65). E não será exactamente assim que os heterónimos pessoanos devem ser entendidos? Como indeclinável assumpção e reconhecimento de integridade poética? O conteúdo de imediato se assumindo como forma? Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Fernando Pessoa, Bernardo Soares ... Por isso lhes inventou Pessoa vidas. Anna Klobucka e Silvina Rodrigues Lopes comentaram já o modo tão original como Sophia leu-e-escreveu Pessoa.[4] Por isso espera ela que o ser-poeta seja tão «íntegro como um poema».
Esta frase que me empresta o título – «íntegro como um poema» – é um verso de um magnífico poema de Mar novo (1958) curiosamente intitulado «Semi-Rimbaud» (Andresen 1958: 56-57). Curiosamente, digo eu, porque é intrigante aquele semi. A poeta escreve um poema ostensivamente sobre Rimbaud, de quem diz «íntegro como um poema». Em muitos dos seus poemas, «Bateau ivre», por exemplo, Rimbaud é poeta e poema. No entanto, o poema de Sophia oferece-se como metade-de-si-próprio-poeta. Atendendo ao memorável «Je est un autre» de Rimbaud, que sujeito parece atrair aqui Sophia?[5] O eu ou o outro? Ou falará ela da impossibilidade corporizada em Rimbaud? Eis o belíssimo poema, primeiro incluído em Mar novo em 1958:
Semi-Rimbaud
Seu rosto é uma caverna
Onde frios ventos cantam
Passa rasgando o luar
E desesperando a noite
Pelas ruas oblíquas da cidade
Em madrugadas duvidosas
Constrói o mal com gestos cautelosos
E sonha a inversão total das coisas
Constrói o mal com gestos rigorosos
Lúcido de vício e de noitada
Íntegro como um poema
Completo lógico sem falha
A aurora desenha o seu rosto com os dedos
As suas órbitas iguais às das caveiras
Seu rosto voluntário e inventado
Magro de solidão verde de intensa
Vontade de negar e não ceder
De caminhar de mão dada com o nojo
De ser um espectro para terror dos vivos
E uma acusação escrita nas paredes.
4 Anna Klobucka escreveu algumas páginas luminosas sobra a recepção de Pessoa por Sophia. Cf. Klobucka 2009: cap. III. Mas ver também Silvina Rodrigues Lopes em Andresen 1989: 20-22.
5 Cf. Carta a Georges Izambard, 13 Maio 1871, e carta a Paul Demeny, 15 Maio 1871.
O título de imediato frustra as expectativas de quem concebe um Rimbaud «inteiro». Sophia esforça-se por imaginar um poeta congenial, de palavras cautelosas e rigorosas, prenhes de desespero e lucidez, e sobretudo capazes de saber do mal, de acusar e de tudo inverter. E por que tem «vontade de negar» o inventado rosto do Rimbaud de Sophia, que até fala, com ressonâncias bíblicas, de uma «acusação escrita nas paredes»?[6] O que me parece é que este semi-Rimbaud de Sophia revela quão longe ela está, ou se deseja, do extraordinário poeta de Une saison en enfer, que o jovem Jorge de Sena soube ler como ninguém. Vem à ideia a «descoberta» de Sophia, nessa entrevista a José Carlos de Vasconcelos de 1991, de que «só nos influencia aquilo que já se parece connosco».[7] Suspeito, no entanto, que o meio-Rimbaud de Sophia, embora dele se distanciando, muito deve ao Rimbaud que Sena revela no ensaio que concebeu em 1941, tinha ele pouco mais de 20 anos, e publicou no ano seguinte na revista Aventura. O que estou a sugerir é que este ensaio de Sena sobre Rimbaud teve algum impacto na teoria e prática poéticas de Sophia, se bem que ela se tivesse deixado ficar, por assim dizer, de pé atrás.[8] Ao contrário de Sena, Sophia não “se parece” com Rimbaud. Enquanto Sena insiste «por inteiro», Sophia diz «semi».
Sophia leu em Sena que «Rimbaud é um caso excepcional de unidade e plenitude psíquicas» (Sena 1994: 21). Deve ter-se deixado impressionar pelas reflexões de Sena sobre a «complexidade extraordinária» do poeta francês e sobre a sua preocupação com «a matéria e a forma» e com «a integridade». Sena fala eloquentemente do poeta Rimbaud como «homem total», «inteiro» e uma «personalidade intrínseca», que acaba sendo tudo o que dele se disser e o seu contrário (22). É assim mesmo que dele se quer apropriar Sophia no seu poema – «íntegro», «completo», «lógico», «sem falha». Mas o contraditório «semi» do título dá que pensar. Pois enquanto Sena fala da maestria do poète maudit que revolucionou a tal ponto a língua e a tradição poética francesas, e o que por poesia se entende em geral, que nunca mais nada ficou como dantes, Sophia ouve com alguma inquietação a rebeldia e a «vontade de negar» do homem empírico que desespera do status quo e «sonha a inversão total das coisas». É provável que, ao escrever «Semi-Rimbaud», Sophia tenha de igual modo em mente o «Rimbaud revisitado» (1953), onde muito mais tarde Sena parece reconsiderar a sua relação com o poeta francês, a quem chama agora «homem pérfido» e «poeta maravilhoso», e a quem não perdoa o que nele admira e a quem «muito» ama. Carlo Vittorio Cattaneo fala, com toda a propriedade, de um amo e odi de Sena.
O contraditório sentimento reverbera no poderoso poema de Sophia. Repare-se na violência das associações-em-choque das palavras que dão forma ao poema: lúcido, rosto e caverna; aurora e noite; luar e desespero; gestos e mal; vício e noitada; rosto, órbitas e caveiras; mão e nojo; espectro, vivos e acusação. A leitora chega ao último verso – «E uma acusação escrita nas paredes» – e julga nele ouvir, na boca de Sophia, uma condenação de Rimbaud-por-Rimbaud. Do poeta retém a poeta a «delicadeza» de como se perde a vida ao sucumbir à ilusão. Esse outro poema de Sophia, a que aludo agora, claramente inspirado em «Chanson de la plus haute Tour», de Rimbaud,[9] porventura através de Sena (que do poema cita os dois versos cruciais – «Par delicatesse / J’ai perdu ma vie» – 31) – chama-se justamente «Por delicadeza» e diz assim:
6 A alusão à escrita na parede do Livro de Daniel associa o poeta à palavra profética, que desvenda e denuncia.
7 Na já citada entrevista conduzida por José Carlos de Vasconcelos, Sophia revela que aprendeu isso mesmo em Ponge
8 Jorge de Sena, O dogma da trindade poética (Rimbaud) e outros ensaios (Porto: ASA, 1994). Sena tinha 22 anos quando primeiro proferiu esta conferência nos cinquenta anos do nascimento do poeta, em 1891. O texto da conferência, repleto de citações da obra toda de Rimbaud, com destaque para Une saison en enfer e Illuminations, seria publicado um ano mais tarde, na revista Aventura, e logo a seguir em separata (Homenagem a Arthur Rimbaud, 1942). No volume de Obras de Jorge de Sena, de que me sirvo, a «O dogma da trindade poética» segue-se outro ensaio, «Rimbaud, revisitado», primeiro publicado no Suplemento Literário do Comércio do Porto de 22 de Dezembro de 1953, para comemorar os cem anos da morte do poeta, em 1854. Suspeito que no «Semi-Rimbaud» de Sophia repercute o perturbado juízo final sobre o «homem pérfido» e «maravilhoso poeta» que Sena sabe «muito» amar (51). Não cabe aqui desenvolver o tema da relação poética entre Sena e Rimbaud, tratada por muitos especialistas, a começar por Carlo Vittorio Cattaneo. Ver a sua introdução à antologia bilingue da poesia de Jorge de Sena, Esorcismi (Milão: Academia, 1974), mais tarde reelaborada como «Testemunho e linguagem» e incluída em AA. VV., Estudos sobre Jorge de Sena (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984) 239-258. Ver também Luís Adriano Carlos, Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena (Porto: Campo das Letras, 1999), esp. 45-58 (“A vidência”).
9 Cito da edição, da responsabilidade de Paul Claudel, que foi, sem dúvida, a que esteve à mão de Sena: Rimbaud 1937: 144-146. O poema «Chanson de la plus haute Tour» é invocado, com diferença, em Une saison en enfer, 289-290 («Délires II, Alchimie du verbe») [Claudel é mencionado por Sena na página 35].
Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei
Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado
Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei
Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado
Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei
Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também eu direi
«Juventude ociosa.
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida» (Andresen 1977: 73-74) [10]
10 A repetida primeira e última estrofe de «Chanson de la plus haute Tour», de Rimbaud, a que Sena faz referência no seu ensaio, surge reinterpretada no fecho do poema de Sophia. «Oisive jeunesse / À tout asservie, / Par delicatesse / J’ai perdu ma vie» (144; 146), passa a ser «Juventude ociosa / Por tudo iludida / Por delicadeza / Perdi minha vida».
Mas será realmente do poeta-poema Rimbaud que o «Semi-Rimbaud» de Sophia fala? Ou mesmo este «Por delicadeza», com seu ritmo baladesco, que é também o do poema de Rimbaud mas igualmente o da «Nau Catrineta», que Sophia aprendeu a recitar antes mesmo de saber ler? (Andresen 1996: 349). Sugiro que os Rimbauds de Sophia, como aliás toda a poesia de Sophia, falam antes do poema como ela o imagina, da forma poética como ela a concebe: poema íntegro – conteúdo e forma – poesia inteira, lisa, limpa, plena, lúcida, clara, justa, exacta, rigorosa, pura, perfeita, límpida, intacta. Poema-palavra.
Quem está minimamente familiarizado com a poesia de Sophia reconhece nos adjectivos que acabo de enumerar palavras que se lhe impõem para dar forma-em-conteúdo à sua poesia. [No que se segue, cito dos poemas: «Corpo» (1954), «Projecto I» (1974-75), «Nunca mais» (1944), «Navegações» (1977) e «Antínoo» (1967)]. É na «pureza» (II, 74), «lisura» (III, 200) e «plenitude» (I, 51) das palavras que reside «a inteireza do possível» (III, 253) e a «ordem intacta do mundo» (III, 67). Afinal, palavra-de-poeta é «A forma justa» (1977, III, 238), que suspende a distinção entre vida e poesia, e que Sophia reinventa na página em branco como seu ofício de poeta/cidadã:
Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos – se ninguém atraiçoasse proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
– Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo