Quando Ana Luísa Amaral me propôs que participasse no Ciclo Sophia e as Artes abordando a relação entre Sophia e a Dança, tive imediatamente um desejo enorme de falar sobre o quanto a escrita de Sophia é uma imensa coreografia das sensações, dos sentidos, das memórias, de vivências que são continuamente convocadas para dançar umas com as outras, e de como as palavras se tornam vivas e cheias de um movimento por vezes longo, por vezes repentino, por vezes forte, ou leve. A minha relação inicial com a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen está ligada aos seus textos para a infância, nomeadamente A Menina do Mar e A Fada Oriana, textos que procurámos trabalhar de uma forma poética.
Há uma frase para mim muito significativa na narrativa de A Fada Oriana. Nela, reflete-se uma ideia de poesia que identifico com Sophia. É o momento em que Oriana, perdida com a sua imagem refletida no rio, vai ao espelho para confirmar a sua beleza:
Oriana – Achas que sou bonita?
Espelho – És muito bonita, mas há uma coisa muito mais bonita do que tu: uma parede branca, nua e lisa.
Nesta depuração para chegar à essência e ao âmago das coisas reside, para mim, a força da obra de Sophia.
Outro conto que trabalhei foi A Viagem, que pertence ao livro Contos Exemplares. Nesta obra, a palavra é tão justa e tão forte que procurámos, na encenação, reduzir o movimento ao essencial. O texto é de uma riqueza tal que o nosso desejo foi dar corpo à palavra, dar voz ao texto, torná-lo som e espaço, de maneira a que o espectador fosse arrebatado de forma clara e incisiva, e transportado para dentro do texto. Veja-se esta frase:
Sentaram-se os dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da árvore e a carne firme, fresca e limpa da maçã estalou entre os seus dentes.
É imediata a sensação do paladar húmido da maçã que invade a nossa boca. A forma vibrante, sensível e penetrante com que as palavras de Sophia ecoam dentro do nosso corpo é pura dança das sensações, das memórias e da imaginação.
Por outro lado, quando recebi o convite para participar no Ciclo Sophia e as Artes, senti-me demasiado pequena, face a um universo tão imenso como é o universo da poesia de Sophia, e por isso resolvi adotar uma estratégia para esta apresentação: ancorar o meu pensamento em excertos dos textos que Sophia designou como ARTE POÉTICA I, ARTE POÉTICA II e ARTE POÉTICA III, relacionando-os com três criações: Território, Inquietações e Vestígio. Enquanto criadora, a poesia foi sempre para mim uma necessidade e uma procura, pelo quanto me alimenta e me faz sentir religada com o cosmos.
Sophia diz, em Arte Poética I:
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética. (…)
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis nem a Demeter, nem aos astros nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.
Sobre esta necessidade de nos religarmos ao cosmos, convoco também as palavras de Alberto Carneiro, nas suas Notas Para Um Manifesto de Uma Arte Ecológica, que foram a essência da criação do trabalho Território, estreado no ano de 2008:
A Arte ecológica será o renascer de uma alegria natural no encontro com uma natureza renovada e já infinitamente próxima; (…)
A Arte ecológica será um regresso à origem das nossas próprias fontes; (…)
Uma nuvem. Uma árvore, uma flor, um punhado de terra situam-se no mesmo plano estético em que nós nos movemos, são parte integrante do nosso mundo, são um manancial de sensações vindas de todos os tempos, através de uma memória que tem a idade do homem. Não a pedra pelo seu lado externo, pela conversão dos seus valores formais, mas pelas qualidades do seu íntimo, pelo cosmos que está nela e o qual nos é dado possuir na simplicidade em que a coisa vive.
No projeto Território, para trabalharmos a ideia da necessidade de nos religarmos ao Cosmos e por isso à Natureza, fizemos um trabalho de campo em que “mergulhámos” num bosque de bétulas, bosque no qual permanecemos um dia, e nele trabalhámos de olhos fechados para sentirmos de uma forma mais incisiva a presença da luz das sombras, os cheiros, o tato nos troncos, o som dos paus que se quebram debaixo dos nossos pés ao caminhar, o som das folhas arrastadas, as nossas vozes a ecoarem por entre as árvores, a propagação do som de diferentes maneiras, o calor suave do raio de sol que nos toca por entre os ramos, na presença de uma luz coada por entre as folhas. Posteriormente, em estúdio, improvisámos, construímos e coreografámos sequências de movimento, procurando dar corpo a esta matéria, convocando essas memórias.
A Arte ecológica será o renascer de uma alegria natural no encontro com uma natureza renovada e já infinitamente próxima; (…)
A Arte ecológica será um regresso à origem das nossas próprias fontes; (…)
Uma nuvem. Uma árvore, uma flor, um punhado de terra situam-se no mesmo plano estético em que nós nos movemos, são parte integrante do nosso mundo, são um manancial de sensações vindas de todos os tempos, através de uma memória que tem a idade do homem. Não a pedra pelo seu lado externo, pela conversão dos seus valores formais, mas pelas qualidades do seu íntimo, pelo cosmos que está nela e o qual nos é dado possuir na simplicidade em que a coisa vive.
Outra forma de trabalharmos a obra de Alberto Carneiro foi a construção de cenas cujo motor/impulso foram os quatro elementos. Deste processo, surgiram algumas propostas, das quais escolhemos duas, uma sobre o Fogo, que acabará por dar início à peça, e outra sobre os elementos Água e Terra.
A Justiça é outro tema da obra de Sophia que gostaria de convocar para esta apresentação. Em ARTE POÉTICA III, Sophia escreve:
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo (…)
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no Teatro Grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro de Ésquilo: «Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça». Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto.
(…) Se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.
(…) Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.
O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor, de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência comum.
(…) mesmo que fale somente de pedras ou de brisas, a obra do artista vem sempre dizer-nos isto:
Que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser.
É no seguimento desta ideia – de sermos herdeiros da liberdade e da dignidade do ser, e de, por outro lado, sermos levados a ver “o espantoso sofrimento do mundo” – que passo a falar da peça Inquietações, estreada no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, em 2016. Inquietações parte da dura constatação de como é frágil, nos nossos dias, a fronteira que nos separa do limiar da pobreza. O desemprego e a precariedade conduzem a uma difícil luta pela sobrevivência e pela integração numa sociedade onde o dinheiro é indispensável para quase tudo.
Inquietações é também um olhar sobre os sem-abrigo. É sobre sentirmos que não ter casa é também um problema nosso, que a temos. Como se pode manter a dignidade perante a vida quando se perde tudo? Há formas de existir que não dependam de um meio para sobreviver? Até que ponto a nossa felicidade depende de uma estabilidade financeira? Mergulhados no ritmo sem pausas do nosso trabalho, ficamos longe do que acreditamos ser essencial para a existência: mas tantas coisas, tantos bens, não nos distanciam tantas vezes de uma ideia de felicidade? De que depende o sentido da nossa existência? Inquietações trabalha a incerteza do lugar que ocupamos na sociedade, do que tomamos por felicidade, do que tomamos por vida.
Para nos aproximarmos deste universo, fomos ao encontro de muitas pessoas e associações, que todos os dias procuram dar respostas à dura realidade dos sem-abrigo. Encontrámos pessoas que nos contaram as suas histórias de vida, questionámo-nos sobre os que não se adaptam a regras e horários e preferem a liberdade que lhes traz a rua, partilhámos medos e recordações. E a partir dessa matéria improvisámos para descobrir corpos que falam da solidão, da degradação humana, da vergonha e de uma tristeza profunda.
E por último, em ARTE POÉTICA II, Sophia fala-nos de uma poesia concreta dizendo:
(…) Pois a Poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação com o real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o Poema não fala duma vida ideal mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
Concreto foi também o encontro com as Fotografias de Geoges Dussaud, mais especificamente com a sua obra sobre Trás-os-Montes nos anos 70 e 80, e assim surgiu o espetáculo “Vestígio”. Observando as fotografias, fiquei tocada pela forma delicada e profunda com que nos faz chegar ao âmago da força humana. Força essa que aqui surge aliada a uma enorme poesia e a uma qualidade física na qual a luz e o contraste claro-escuro nos distanciam do real, do dizível, aproximando-nos da iconografia da pintura.
O meu desejo de trabalhar a partir desta série de fotografias surge a par da consciência do quão difícil seria dar-lhes corpo, materializar e comunicar a dimensão poética das imagens, construída por lugares e pessoas cujos olhares e vidas deitam por terra a vulgaridade. Enriquecemos com estes pedaços de vida que têm a força acutilante de uma ligação primordial à natureza, na qual a dimensão da partilha e o sentido comunitário estão presentes de uma forma tão viva.
Para este trabalho, foi necessário ir aos lugares, habitá-los, percorrer os seus caminhos, conhecer as pessoas para chegar a estas memórias que estão povoadas de imagens e acontecimentos de um tempo que já não existe, um tempo cujos vestígios foram guardados generosamente pelo clique de Georges Dussaud.
Foi num diálogo permanente com as imagens, que, como numa luta de boxe em pleno ringue, atacámos, e pelas quais também fomos atacados. Neste trabalho, o ringue foi esse espaço de experimentação onde, tocados pelas imagens, avançámos através das histórias feitas de gestos e corpos, vestígios dessa procura.
Para terminar, regresso às palavras de Sophia no seu conto “A Viagem”, narrativa que representa para mim uma metáfora da vida:
E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Termino com este excerto porque o meu maior desejo, quando construo uma peça, é que ela seja exatamente esse lugar de paragem, esse lugar em que há tempo para olhar as coisas, esse lugar em que há tempo para tocar as coisas, para sentir, para pensar e para questionar…
E as palavras de Sophia são sem dúvida uma dança feita desse lugar…
E as palavras de Sophia escondem sem dúvida uma dança feita desse lugar…