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Queria começar por dar a voz a Sophia numa rememoração do dia 25 de Abril de 1974 [1], num texto menos conhecido do que o belo e celebrizado poema de O Nome das Coisas. Os termos da evocação da narradora do conto «O Cego», que dizem o mesmo sentido celebrativo, apoiam-se numa descrição que toma o movimento e a dança como núcleo de duas belíssimas imagens. Por um lado, os grupos de pessoas que atravessavam as praças são vistas como «um bando de aves migratórias». A outra imagem, que assinala a exaltação do momento, é a de alguns grupos que «pareciam o corpo de baile que, aéreo e leve, atravessa o palco»:
1 Este texto é uma versão revista e aumentada do meu ensaio «Sophia: Tudo me é uma dança» publicado na plaquete Sophia e a dança, Lisboa, Companhia Nacional de Bailado, 2014, pp. 2-10, que, por seu turno, teve por base o texto «Sophia e a dança do ser» in Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio Internacional (org. Maria Andresen Sousa Tavares e Centro Nacional de Cultura), Porto, Porto Editora, 2013.
Ao cabo de longas décadas de ditadura minuciosa, a súbita mudança foi uma festa incrível, uma intensa e confiante alegria sem dúvidas nem sombras. Durante alguns dias vivi em estado de levitação, sem sono, sem fome, sem cansaço, sem peso. Na rua todas as pessoas sorriam, ninguém empurrava. Parecia que o mal tinha acabado. Surgiam pequenos grupos de gente muito nova que, em diagonal, atravessava as praças com uma bandeira à frente, correndo em triângulo como um bando de aves migratórias. Outros grupos pareciam o corpo de baile que, aéreo e leve, atravessa o palco. Não era só a política que tinha mudado, era, parecia-nos, a vida que tinha regressado à sua verdade. Parecia-nos que se cumpria o sonho de Rimbaud e a poesia se tinha tornado interior à vida quotidiana. (Andresen 2021: 202)
No âmbito da esfera biográfica, que assume uma grande relevância na poética da autora, destaco um quadro: Sophia dança. Trata-se de um biografema que se vai fixando, com nitidez, através de diversas achegas: os relatos de pessoas próximas (em concreto, os depoimentos dos filhos); os testemunhos na primeira pessoa e, ainda, alguma iconografia.
Queria lembrar a existência de fotografias cheias de movimento, que revelam Sophia a dançar, em eventos sociais, ou a ensaiar passos de dança com os filhos. Destaco duas fotos. Numa, dos anos 1950, ao lado de Menez e de outra amiga, vemos Sophia em pose de bailarina; [img.1] noutra, de 1964, Sophia dança com os filhos Miguel e Sofia, na casa da Travessa das Mónicas. [img.2]
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Em tempos diversos, as memórias filiais evocam o gesto. Maria Andresen, no filme de João César Monteiro [2], de 1969, num texto lido em voz off, alude cripticamente a Isadora Duncan para aproximar as figuras; e no mesmo filme, antes disso, junto dos irmãos, explicita o mesmo gesto, reportando-se à figura materna que dançava e declamava:
2 Sophia de Mello Breyner Andresen - Filme de João César Monteiro, 1969. Vídeo integral disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=VDi1av1fgzo
Toda a vida me lembro de ter visto a mãe a dançar. Quando nós éramos pequenos, a mãe constantemente dançava e punha flores na cabeça e fazia passos de dança, e ao mesmo tempo falava sozinha pelos corredores fora.
Trinta anos depois, Miguel Sousa Tavares enfatiza esse traço, recuando aos tempos da infância, para retratar a mãe que «às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, […] dançava pela sala fora» («E ela dança», Público, 12 de Junho de 1999).
Em todos estes relatos, a dança é uma expressão indissociável da poesia. De alguma forma esboça-se uma figuração mítica que tem profundos reflexos no corpo poético.
Num dos testemunhos na primeira pessoa, numa entrevista, de 1982, concedida a Maria Armanda Passos, para o JL, quando solicitada para falar sobre a dança, Sophia reporta-se a vários tempos, da infância e da juventude à idade adulta, confirmando aí elementos apresentados nas outras fontes. A dança ocorre como acto isolado (na infância, “inventava danças sozinha”) ou como exteriorização partilhada com os filhos (“quando os meus filhos eram pequenos, dançava para eles”). Em relação ao presente da entrevista, à pergunta se ainda dança, Sophia responde, após uma pausa: «–…Muitas vezes imagino bailados e argumentos para bailados».
Este traço biográfico manifesta-se de uma forma muito directa nos domínios da dicção e da corporalidade. Refiro-me aos livros para crianças. Sabe-se que a maioria destes textos foi escrita para ser lida aos filhos. A dança é a mais forte identidade da protagonista de A menina do mar (1958): ela é a bailarina dos mares. A centralidade do motivo da dança configura igualmente um procedimento que imprime um notável ritmo narrativo a este magnífico livro:
O rapazinho sentia-se tão feliz que às vezes punha-se a dançar em cima dos rochedos.
[…]
Depois pararam de rir e a menina disse: -Agora quero dançar. Então, num instante, o polvo, o caranguejo e o peixe transformaram-se numa orquestra.
[…]
Então a menina saiu da água, subiu para uma rocha e principiou a dançar. E a água junto dos seus pés ia e vinha e bailava também. (Andresen 2021: 231-232)
Ilustrações de Sarah Afonso para “A menina do Mar” e foto de Sophia na praia da Granja.
Do mesmo modo, A Fada Oriana, no livro com este nome (1958), vive a bondade e a beleza das coisas, numa forma de liberdade concordante com suas movimentações. Oriana faz passos de dança, fala e dança, corre, voa e dança. Como já acontecia com A Menina do mar, deparamos com uma estreita adequação entre a fluidez rítmica da história e o sopro poético:
Oriana tocou com a sua varinha de condão no ar e o ar encheu-se de música. Estava lua cheia e o luar inundava tudo. Cheirava a madressilva e a rosas. – Oriana – pediu o Poeta –, dança a dança da noite de hoje. Então Oriana começou a dançar no ar, em pontas dos pés, a ‘Dança da Noite de Luar da Primavera’. (Idem: 232)
Podemos ler a descrição da dança que Oriana executa para o Poeta, como se lêssemos um dos versos de Sophia: «Dançava como as flores dançam no vento, e os seus braços eram iguais ao correr dos rios». E as figuras da dança das flores, cujos nomes o rapaz de bronze, no livro com o título homónimo, vai explicando a Florinda reenviam para uma extraordinária coreografia que nos faz lembrar o Quebra-Nozes:
Primeiro, as flores formavam uma grande roda. Depois, a roda desfazia-se e transformava-se em estrela. E o lugar onde Florinda estava era o centro da roda e o centro da estrela. Mas logo a estrela girando, leve e lenta, se dividia em muitas estrelas. Depois cada estrela ia formando uma nova figura: umas transformavam-se em círculos, outras em losangos, outras em figuras mais complicadas. (idem: 256-357)
Outros bailados parecem ecoar na poesia de Sophia. É o caso do Apollo, com música de Stravinsky e coreografia de Balanchine, que tem eco provável nos primeiros livros,[3] e que biograficamente nos reenvia para o tempo do círculo dos irmãos Veiga de Oliveira, evocado em entrevistas,[4] em textos memorialísticos ou no poema do livro Musa (1994), «Para Ernesto Veiga de Oliveira no dia da sua morte»:
Foi nesse tempo o tempo:
Longas tardes conversas demoradas
No extático fervor adolescente
Das grandes descobertas deslumbradas
Versos dança música pintura
Um mundo vivo em canto e em figura
Que a vida inteira ficará comigo
Agradecendo a graça do ter sido.
3 O bailado, coreografado em 1928 por Balanchine, recebeu inicialmente o nome Apollon Musagète. Recorde-se o que diz Sophia numa nota no final do volume Poesia, na 2ª edição da Ática, em 1950, sobre um dos poemas deste livro: «Foi ‘re-unido’ o poema ‘Dionysos e Apolo’ que antes eu tinha dividido publicando uma parte na Poesia, uma parte no Dia do Mar e deixando outra parte inédita nos meus cadernos». Em Dia do Mar, podíamos ler o poema «Deus puro, Apolo Musageta». Posteriormente, a partir da edição da Obra Poética, em 3 volumes, na Caminho, em 1990, a III parte do longo poema «Dionysos e Apolo», em Poesia, receberá o nome «Apolo Musageta».
4 «E quando estava no Porto ia para Matosinhos para casa do Eduardo e do Ernesto Veiga de Oliveira e ouvíamos ‘Das Lied von der Erde’ do Mahler, que nesse tempo ainda não estava na moda» (entrevista a Eduardo Prado Coelho, revista do ICALP, 1986)
Em 1952, estando já a viver em Lisboa, Sophia vai assistir aos espectáculos da Companhia Sadler’s Wells (que a partir de 1956 se chamará Royal Ballet), em digressão por Portugal.[6] Os bailados foram apresentados primeiro no São Carlos e depois no Teatro Rivoli, no Porto. No espólio de Sophia, existe uma carta escrita à mãe, que vivia no Porto, dando conta destes espectáculos. Trata-se de um tocante depoimento sobre o modo como Sophia vivencia poeticamente a dança. Isso é muito visível nas referências que faz ao «Lago dos Cisnes» e especialmente à célebre primeira bailarina Margot Fonteyn, assim como na referência ao ballet abstracto, de ressonâncias metafísicas (de alguma forma muito andreseniano), Symphonic Variations, coreografado por Frederick Ashton (1946), com música César Franck (Variations Symphoniques em fá sustenido menor para piano e orquestra):
Ontem vi o ‘Lago dos Cisnes’ que é tão bonito, tão bonito que nem tem explicação. É tudo lindo, os vestidos, as danças, os bailarinos, as cores, etc. Dançam todos lindamente e a bailarina principal que se chama Margot Fonteyn é maravilhosa: maravilhosa de técnica e maravilhosa de expressão e de ‘temperamento artístico’. Dançou um ‘pas de deux’ que é uma das coisas mais bonitas que tenho visto. Diga aos manos que se eles forem aos bailados vão ao ‘Lago dos Cisnes’ que é o mais bonito de tudo que eles dançam. Os bailados modernos não são tão bons, tirando a meu ver as “Variações sinfónicas”. Os outros são bem dançados e com fatos e décors bonitos mas com pouco interesse.[7]
6 O poeta José Blanc de Portugal, numa das suas crónicas na Emissora Nacional, apresentou um excelente relato do que foi a vinda da Companhia de ballet britânica a Portugal. Podemos ler o texto nos arquivos do Museu da RTP – http://museu.rtp.pt/app/uploads/dbEmissoraNacional/Lote%2011/00031357.pdf
7 Espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen. Biblioteca Nacional de Portugal.
«A bailarina da serra», um belíssimo texto publicado no Diário Popular, a 5 de Dezembro de 1957, evoca a primeira bailarina que Sophia viu na sua vida, Clotilde Sakharoff. A lembrança só aparece a reforçar um ponto essencial em toda a obra Sophia e que se prende com a absoluta consonância entre o ser, a palavra e o mundo. É esse o mais alto sentido de plenitude que se pretende alcançar: «a união da vida humana com a harmonia do universo».
Fazia parte de um rancho de Dem. Tinha oito anos e era pastora. Poucas vezes na minha vida vi num ser humano tanta perfeição. Dançava atentamente, serenamente. Não havia nela um gesto que não estivesse rigorosamente dentro do compasso. A sua maneira de dançar era tão simples, tão natural, tão certa que não se pode descrever. Dançava como a brisa dança, como os rios correm, como as algas no mar baloiçam. Tudo nos seus gestos era harmonia e claridade.
[…]
A sua beleza e aquela maneira de dançar tão naturalmente harmoniosa faziam-me lembrar a primeira bailarina que vi na minha vida: Clotilde Sakharoff.
[…]
Não conhecerá nem apoteoses, nem glória, nem públicos entusiásticos, nem efeitos de luzes, nem maquilhagem, nem contratos. Dançará sozinha ou com o seu povo nas festas. Não dançará para ser célebre nem para ganhar dinheiro. Dançará por pura alegria de dançar. E é melhor assim. Porque na serra de Arga à roda de um pinheiro ela viverá aquilo que uma bailarina num palco apenas representa: a união da vida humana com a harmonia do universo.