SOPHIA

E A MÚSICA

PEDRO EIRAS

Faculdade de Letras da Universidade do Porto / Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa

1. Da raridade...

Não devemos, não podemos ler a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen sem ouvir os diálogos que ela estabelece com outros textos, outras escritas, outras artes. Estes poemas convocam, de tantos modos, obras de Homero, Dante, Byron, Fernando Pessoa ou João Cabral de Melo Neto; telas de Maria Helena Vieira da Silva ou Graça Morais; toda a tradição escultórica da Grécia antiga; e o universo da dança. Um diálogo tão intenso e plural implica uma afinidade entre as formas: o poema responde a outros poemas, ou interroga a especificidade de pinturas, esculturas, coreografias, que se tornam matéria da própria reflexão poética, matrizes de uma escrita.
      E contudo, surpreendentemente, o diálogo explícito da poesia da Sophia com a música pode parecer muitíssimo raro. Numa descrição simples, constato que o primeiro surgimento da palavra «música» acontece apenas em Livro Sexto, de 1962; e claro que é já muito íntima, essa «Música passando pelas veias» (1962: 470), essa música-sangue, vital; mas é também esquiva ou quase desaparecida na obra de Sophia. Só nos últimos dois livros de poemas a palavra «música» se repetirá várias vezes; nomeadamente em Musa, de 1994, aliás um livro dividido em três «andamentos», e onde se diz de Orpheu, o príncipe dos poetas, que «Ante seus pés se deitam mansas feras / Vencidas pela música divina» (1994: 835). E apenas num poema de Ilhas, sobre uma pintura de Maria Helena Vieira da Silva, Sophia recorre extensamente ao vocabulário técnico da música, cruzando escrita poética, representação pictórica, imaginário musical: «Um pouco atrás as musas da penumbra tocam suas finas flautas. É o rigor da música que estrutura a ordem das formas, as variações, o retomar dos temas, o contraponto da repetição» (1989: 813).
      Para terminar esta descrição, necessariamente minimal, constato que em toda a poesia de Sophia há apenas uma referência a um compositor e a um intérprete, no poema «Bach Segóvia guitarra», no livro Geografia, de 1967. Constato que, sendo a palavra «música» tão rara, surgem inúmeras vezes vocábulos como «voz», «canto», «ritmo», «silêncio». E lembro que, claro, não é necessário usar a palavra «música», referir compositores ou intérpretes, para haver na poesia uma meditação sobre uma experiência musical que atravessa todas as coisas. Na verdade, a mesma escassez ou ausência dos nomes de compositores, de títulos de obras, do vocabulário da música – sugere uma intuição fundamental: a música que seduz Sophia é anterior e avessa a todo esse vocabulário, à musicologia, à história de uma instituição; talvez a ausência da palavra «música» seja, afinal, uma forma de a proteger – de a salvaguardar.  

2. …e da omnipresença da música

Talvez se resolva então o paradoxo: a palavra «música» é rara em Sophia, mas a música é omnipresente nos poemas – tão presente, veremos, quanto o mar, as árvores, a alma, porque alma, árvores e mar são, eles próprios, formas de música.
Por isso, Sophia escreve, num poema de Dia do Mar: «sinto / Cada coisa vibrar como uma lira» (1947: 160). As coisas vibram; todas as coisas consistem numa vibração própria, ou murmúrio, numa forma de música espontânea, anterior à própria humanidade. Assim, para Sophia a música é inerente à essência das coisas: define-as e ordena-as. Sexto Empírico, no seu tratado Contra os Matemáticos, lembra que, segundo Pitágoras, «todo o universo é ordenado segundo uma afinação, e a afinação é um sistema de três acordes» (apud Kirk, Raven & Schofield 1957: 243), com relações matematicamente definidas; mesmo para lá das coisas terrenas, a música das esferas segue o mesmo equilíbrio de relações perfeitas, vibração impecável do cosmos, aquém e além do humano. E quando qualquer poema de Sophia interroga uma coisa, é esse acorde secreto, único e íntimo, que se ouve em primeiro lugar.
As coisas vibrando «como uma lira» são a primeira forma de música: coisas obedecendo a si próprias, à vibração ímpar que as define, existindo «Dentro de um ritmo cego inumerável», como diz No Tempo Dividido (1954: 317). Mas essa origem do som não vem apenas do passado, ela pode ser surpreendida em qualquer coisa presente, como um búzio, neste breve poema de O Nome das Coisas:

COMO O RUMOR     

 

Como o rumor do mar dentro de um búzio  

O divino sussurra no universo  

Algo emerge: primordial projecto   

(1977: 659)  

 

O divino sussurra no universo, porque o divino é um sussurro, porque o próprio universo se revela divino quando é som, vibração, música espontânea das coisas no instante. Existe uma «música do ser» (1967: 517), porque ser é imediatamente ser música, e cada coisa se define por um ritmo próprio, intrínseco: o ritmo-mar, o ritmo-dia, o ritmo-búzio. Em La Leçon de Musique, Pascal Quignard glosa uma velha lenda chinesa: um músico, Po Ya, descobre a música quando, após uma tempestade assustadora, reencontra o silêncio; mas o seu mestre, Tch’eng Lien, corrige-o: «A música não é o fim da tempestade, a música é a própria tempestade» (Quignard 1987: 107). Segundo esta reescrita da lenda, a música não é um intervalo entre as coisas, um estado de excepção, ainda menos um artifício humano; mas a própria realidade das coisas: o ribombar da terrível tempestade – ou o suave som de uma vassoura varrendo, que mestre e discípulo ouvem, durante horas, com lágrimas nos olhos.
Em Sophia a música é um modo de existência das coisas, antes de haver sequer ouvidos humanos e a techné da composição, escolas, géneros, códigos e convenções. Esta consciência de que a música não é um atributo das coisas, mas a sua essência, torna-se cristalina nos muitos poemas de Sophia sobre o mar. Em Poesia, podemos ouvir «A selvagem exalação das ondas / Subindo para os astros como um grito puro.» (1944: 65); em Musa, o «impetuoso arfar no mar imenso» (1994: 823). Em Dia do Mar, esse som multímodo e essencial confunde-se com as pulsações de quem ouve – «E no vasto cantar das marés cheias / Continuava o bater das suas veias» (1947: 164) –, e em O Búzio de Cós e Outros Poemas, a mesma pulsação resulta de uma medida poética natural – «A maré alta sete vezes cresce / Sete vezes decresce o seu inchar / E a métrica de um verso a determina» (1997: 882).
O mar, em suma, não produz som, não possui som: ele é som, ritmo, princípio da música, que a poetisa deve apenas escutar e dizer em palavras. Em 1905, numa carta ao crítico Pierre Lalo a propósito do poema sinfónico La Mer, Claude Debussy afirmava: «Eu amo o mar, e ouvi-o com o respeito apaixonado que lhe devemos», tendo simplesmente transcrito «o que ele me ditou» (Debussy 1905: 183): lendo esta frase à letra, La Mer não é senão a representação, mais fiel possível, do mar; e, segundo Sophia, o próprio mar já é música, uma música anterior, antiquíssima, primordial.
O compositor compõe e a poetisa escreve aquilo que lhes é ditado pelas coisas, por essa voz anterior e anónima. Na verdade, mesmo quem ouve e escreve é também constituído por uma música interior, «Uma vida secreta e fugitiva, / Feita de sombra e luz, terror e calma, / Que é o perfeito acorde da minha alma», lê-se em Poesia (1944: 63); ou, em Coral: «o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas» (1950: 224). Como John Cage procurando o silêncio rigoroso numa câmara anecóica, mas descobrindo que não podia deixar de ouvir a vibração do seu próprio corpo, assim Sophia compreende o sujeito como uma vibração íntima. Dito de outro modo, não existe um sujeito silencioso e, no exterior, a pura música: o próprio sujeito ouvinte é pulsação que sustenta um ritmo, ou, regressando à palavra de Sexto Empírico, «acorde»: harmonia interior, em correspondência com a música das esferas, universal. O que existe é um jogo polifónico, invenção a duas vozes, acorde que harmoniza sujeito e existência, escuta íntima de correspondências secretas.

3. O som ínfimo

Tudo é música – o mar mas também quem ouve o mar, o mundo e o escutador do mundo. Ora, em Sophia, trata-se sempre de uma música quase inaudível. Só muito excepcionalmente as ondas se exaltam e o mar grita; o mais habitual é ouvirmos somente um arfar, um sussurrar. E, se procurarmos instrumentos musicais em Sophia, eles são alaúdes (1972: 610), cítaras (1977: 688), «A voz da flauta na penumbra fina» (1994: 840), a «Incessante intensa a lira» (ibidem: 852). Os dias podem ressoar «como harpas» (1997: 865), e num poema de Ilhas chamado «Guitarra» Sophia escreve: «Na voz de oiro e de sombra da guitarra / Algo de mim a si próprio renuncia» (1989: 799).
Existem aqui, portanto, instrumentos de sopro como a flauta, mas não o oboé, o clarinete, o fagote, ainda menos a trompa ou a tuba; instrumentos de cordas dedilhadas, como o alaúde, a guitarra, a harpa, a cítara, mas não de cordas friccionadas, como o violino, o violoncelo, o contrabaixo. Não há uma única referência explícita, em toda a poesia de Sophia, ao piano, ao órgão, à percussão, a conjuntos orquestrais. A música, em Sophia, parece ser sempre de uma intensidade mínima, explorando um pianissimo quase imperceptível. Nos seus escritos sobre música, Vladimir Jankélévitch tenta definir precisamente esse «limiar do inaudível», esse «jogo com o quase-nada»; ou seja,

O pianissimo, embora ainda audível, é a forma quase insensível do supra-sensível: é então sensível por pouco; na fronteira entre o material e o imaterial, o físico e o transfísico, o quase-nada designa a existência mínima além da qual haveria a inexistência, o nada puro e simples (1961: 158)

 

Mesmo se até o mar de Sophia pode ter instantes de arrebatamento, a música mais frequente nesta poesia é constituída por «sons infinitesimais da micro-música» (ibidem), como em «Goesa», de O Búzio de Cós e Outros Poemas:

Uma rapariga descalça como bailarina sagrada  

Atravessou o quarto leve e lenta  

Num silêncio de guitarra dedilhada  

(1997: 874)  

 

Tudo aqui é ínfimo – a leveza, a lentidão, o som da guitarra que se confunde com o silêncio, a própria brevidade do poema. Sophia sabe que a revelação do ser não exige a dialéctica triunfal das grandes orquestras oitocentistas; nada mais distante desta poesia do que a tradição sinfónica e operática entre Beethoven, Berlioz, Wagner, Mahler. Pelo contrário, nesta poesia apenas se ouve o som lento dos pés descalços da bailarina, esse «silêncio de guitarra dedilhada». Eis a medida ínfima, quase imperceptível, da música do mundo em Sophia, provavelmente a mais silenciosa das poetisas portuguesas.
Uma lenda grega antiga conta que, um dia, alguns forasteiros foram visitar Heraclito; encontraram um simples homem aquecendo-se junto de um fogo, e ficaram atónitos, provavelmente desiludidos. Mas Heraclito convidou-os a aproximarem-se, dizendo: «Também aqui estão presentes deuses…» (cf. Heidegger 1946: 86). Também aqui, junto a este fogo humilde e familiar, também aqui, neste quarto onde passa uma bailarina goesa descalça, também aqui, neste quase silêncio – estão presentes deuses.

4. A escuta

Este quase silêncio tem uma consequência ética decisiva. O som ínfimo exige ao ouvinte uma atenção suprema, infinitamente disponível e sem falha – semelhante talvez àquela atenção perfeita que Simone Weil descreve em tantos textos. Se o som do mundo é pianissimo, ele apenas pode ser recebido pela audição mais subtil. «Os meus passos escutam o chão», lê-se num poema em prosa de Geografia (1967: 497), e este escutar subtil e humilde implica, agora, uma suprema lição de ética.
Leio também esta frase de «Arte poética IV», incluída em Dual: «o poeta é um escutador» (1972: 895), ou seja, o poeta é aquele que escuta o poema, que o recebe e transcreve; e Sophia explica ainda: «Direi que o poema falou quando eu me calei e se escreveu quando parei de escrever» (ibidem: 897). Claro que aquela primeira frase evoca o verso célebre de Pessoa, no início de «Autopsicografia»: «O poeta é um fingidor» (1932: 94). Mas, embora Sophia se reconheça tantas vezes na lição poética pessoana, aqui o afastamento é evidente: enquanto em Pessoa o poeta domina a techné do fazer e do fingir, em Sophia não há domínio, apenas escuta, recebimento, obediência a um texto que surge como que ditado, e que só acontece no silêncio de quem aguarda. Neste sentido, desta vez Pessoa parece um interlocutor menos pertinente do que Rimbaud, revisitado por Sophia em poemas de Mar Novo e de O Nome das Coisas – aquele Rimbaud que, numa célebre carta a Paul Demeny, afirmava: «É evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: observo-o, escuto-o: lanço um movimento de arco: a sinfonia agita-se nas profundezas ou invade o palco num salto» (1871: 186). Como Rimbaud escutando a emergência viva do seu pensamento, assim Sophia escutando o advento do poema: eis uma lição poética, que é também uma lição de ética.
Ouvir revela então a dimensão do mundo; a música em pianissimo pede uma escutadora capaz de atenção ao ínfimo. Por isso num poema de Coral se interroga o som das folhas:

ÁRVORES     

 

Árvores negras que falais ao meu ouvido,  

Folhas que não dormis, cheias de febre,  

Que adeus é este adeus que me despede  

E este pedido sem fim que o vento perde  

E esta voz que implora, implora sempre   

Sem que ninguém lhe tenha respondido?…   

(1950: 291)  

 

e noutro poema, de Geografia, essa mesma escuta atravessa a própria natureza para auscultar uma voz divina: «Escuto mas não sei / Se o que oiço é silêncio / Ou deus // Escuto sem saber se estou ouvindo / O ressoar das planícies do vazio / Ou a consciência atenta / Que nos confins do universo / Me decifra e fita» (1967: 516). Mas talvez possa ler agora, finalmente, o único poema de Sophia que nomeia um compositor e um intérprete:

BACH SEGÓVIA GUITARRA     

 

A música do ser  

Povoa este deserto  

Com sua guitarra  

Ou com harpas de areia    

 

Palavras silabadas  

Vêm uma a uma  

Na voz da guitarra    

 

A música do ser  

Interior ao silêncio  

Cria seu próprio tempo  

Que me dá morada    

 

Palavras silabadas  

Unidas uma a uma  

Às paredes da casa    

 

Por companheira tenho  

A voz da guitarra    

 

E no silêncio ouvinte  

O canto me reúne  

De muito longe venho  

Pelo canto chamada    

 

E agora de mim  

Não me separa nada  

Quando oiço cantar  

A música do ser  

Nostalgia ordenada  

Num silêncio de areia  

Que não foi pisada  

(ibidem: 517-518)  

 

Tudo quando escrevi até aqui sobre a música em Sophia existe claramente neste poema: o diálogo entre música e escrita, «voz da guitarra» e «Palavras silabadas»; os acordes do universo que são agora «música do ser»; a subtileza das cordas dedilhadas, ou das «harpas de areia», o quase inaudível; a própria relação entre música e silêncio, «A música do ser / Interior ao silêncio»; a simplicidade das coisas – guitarra, areia, casa –, mas onde também estão presentes os deuses; e a escuta atenta daquela que escreve, «no silêncio ouvinte», e «Pelo canto chamada», aquela cujo tempo depende de escutar, e que só no canto se reúne, identifica, regressa a uma identidade inicial, reconhece o perfeito acorde da alma própria, criada numa praia anterior à humanidade: «Nostalgia ordenada / Num silêncio de areia / Que não foi pisada».

5. O ruído

E contudo – também existe em Sophia o ruído. É raro, mas quando surge ele instaura o terror, a violência, um exílio capaz de negar o conhecimento da música das coisas.
Leio, por exemplo, «Nocturno da Graça», em Mar Novo. Diz-se, nesse poema: «Há um rumor de bosque no pequeno jardim / Um rumor de bosque no canto dos cedros» (1958: 398); porém, em torno, «Brilha a cidade dos anúncios luminosos / Com espiritismo bares cinemas / Ruas densas de gritos abafados / Castanholas de passos pelas esquinas / Viragens chiadas dos carros / […] / Numa noite cega surda presa / Onde soluça uma queixa cortada» (ibidem: 398-399). A «cidade alheia» é dada em fragmentos, por agressivos apontamentos sonoros que nunca chegam a criar uma tessitura. Essa impressão de incompletude – ou de incomunicação – é particularmente vívida na referência àquela «queixa cortada» que «soluça».
Claro que podemos adivinhar um subtexto político numa tal descrição de Lisboa sob o salazarismo, onde todas as queixas são cortadas num tempo dividido… Mas podemos ler o mesmo poema lembrando «Ao longe os barcos de flores», de Camilo Pessanha; também aí há um contraste violento entre os «Festões de som dissimulando a hora» e um lamento inconsolável: «Só, incessante, um som de flauta chora, / Viúva, grácil, na escuridão tranquila» (1920: 131). Nos dois textos, compreende-se que a música da cidade, dos bares, dos carros, ou da orgia, da orquestra – é apenas ruído imponente e esmagador, que impede de ouvir as queixas, os bosques, o som da flauta. Essa música de fundo, invadindo a própria noite, não passa de ruído, isto é, encobrimento do ritmo próprio das coisas.
Por isso em Sophia o ruído implica sempre violência: da cidade contra aquela que quer ouvir o rumor dos bosques, do colectivo contra o singular, da fúria contra a contemplação. Isto significa que a definição de ruído não deve ser tanto musicológica quanto ética: existe ruído onde existe violência e injustiça. Leio também um poema de Dual: «De novo em Delphos o Python emerge / […] / Ventos da Ásia em sua boca trazem / O estridente clamor da fúria» (1972: 595). Ventos da Ásia trouxeram outrora à Grécia invasões, guerras, chacinas, o caos metaforizado pela lendária serpente; e se o poema acusa a reemergência do monstro no presente, importa não esquecer que a Grécia visitada em Dual está mergulhada numa ditadura militar: repete-se assim o caos antigo, recente. E repete-se com ruído, «estridente clamor da fúria», negação da música e instauração do terror. O ruído é o outro nome da violência.

6. Os dois silêncios

Num mundo dominado por gritos abafados e queixas cortadas, há o risco de uma perda absoluta da música, da atenção, da audição: dadas as premissas do universo poético de Sophia, como pode a escuta da música das coisas subsistir?
Não há música onde os deuses abandonaram a humanidade. Num poema de Geografia, significativamente intitulado «Crepúsculo dos deuses», Sophia recupera estas palavras do oráculo de Delfos: «A água que fala calou-se» (Andresen 1967: 556). Numa poetisa em que o mar é música, este oráculo soa radicalmente trágico: o silêncio divino paira sobre o mundo humano, a música das coisas esgotou-se. «A água que primeiro eu escutei já não se ouvia», lê-se também num poema de Dual (1972: 592). E o perigo maior, quando as coisas deixam de ser música, é a perda do próprio canto poético: quando não há o que escutar, como pode o poeta ser um escutador? É esse abandono que parece descrever um poema de Navegações:

Canção rente ao nada  

No silêncio quieto  

Da noite parada    

 

Como quem buscasse  

Seu rosto e o errasse  

(1983: 745) 

  

O nada, o silêncio e a noite tornam o canto impossível. E se conhecer as coisas era ouvir-lhes a música, então nesta forma de silêncio nada se pode conhecer: quem perde a sua canção também se perde a si próprio. O silêncio apaga o rosto, inaugura a errância.
Mas a palavra silêncio exige uma segunda leitura. O poeta russo Gennady Aygi, num texto muito elíptico intitulado «Poesia-enquanto-silêncio (notas)», escreve: «Sim, – tanto o silêncio como a quietude podem ser criados: pelo Verbo. / E a noção emerge: “Arte – do Silêncio.”» (1992: 183). Ao silêncio como retirada dos deuses, mudez das coisas, ignorância de quem escreve, será preciso contrapor este outro silêncio enquanto arte. Nenhum vazio de águas caladas: pelo contrário, um silêncio denso, cheio, lugar de escuta. Este silêncio não é uma consequência do ruído que desfaz a música, não resulta da violência nem da injustiça; pelo contrário, é um silêncio conseguido pela oficina poética, pelo esforço ético de não impor o som, mas receber o mundo.
Talvez se encontre aqui o lugar de maior atenção em Sophia de Mello Breyner Andresen. Em «Arte poética V», publicada em Ilhas, lê-se: «No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização» (1989: 898). Esta despersonalização, claro, não tem nada a ver com o desconhecimento do rosto próprio: aí, tratava-se de uma perda, do vazio que impede o canto; pelo contrário, o vazio de «Arte poética V» é aquele que renuncia ao ruído da identidade – para permitir o ofício do escutador. Para escutar, é fundamental estar em silêncio.
É fundamental uma arte do silêncio, criada pelo verbo, diz Gennady Aygi, contra o silêncio onde os deuses morrem. E a escuta certa para aprender a destrinçar os dois silêncios – para dizer: «E foi como se tudo se extinguisse, / […] / E um perfeito silêncio me embalasse» (1947: 147). Um silêncio certo – para nele finalmente se ouvir a música que se é:

O BÚZIO DE CÓS    

 

Este búzio não o encontrei eu própria numa praia  

Mas na mediterrânica noite azul e preta  

Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais  

Rente aos mastros baloiçantes dos navios  

E comigo trouxe o ressoar dos temporais    

 

Porém nele não oiço  

Nem o marulho de Cós nem o de Egina  

Mas sim o cântico da longa vasta praia  

Atlântica e sagrada  

Onde para sempre minha alma foi criada  

(1997: 862)   

 

Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Programa Estratégico «UIDP/00500/2020», financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Amílcar Vasques-Dias

Angélica Salvi e Vuduvum