II
O modo como a dança entra na poesia, iluminando uma singular e mitificada figura biográfica, reflecte-se especialmente nas composições coligidas nos dois primeiros livros. Num dos primeiros poemas de Poesia (1944) encontramos versos que propõem uma intenção poética e que, como outros mais conhecidos, poderiam ser colocados epigraficamente à entrada da obra:
Tudo me é uma dança em que procuro
A posição ideal
Seguindo o fio dum sonhar obscuro
Onde invento o real.
O contraponto maior à dispersão e ao naufrágio é o movimento ascensional, impulso suscitado pela dança, e que supõe a revelação do ser. Pela dança, isto é, pela poesia, a alma «sobe os degraus do ar…».
À minha volta sinto naufragar
Tantos gestos perdidos
Mas a alma, dispersa nos sentidos,
Sobe os degraus do ar…
É no segundo livro de Sophia, um dos mais extensos, Dia do Mar, de 1947, que este motivo comparece de um modo mais notório. As referências explícitas a «danças» e a «bailados» e as formas dos verbos bailar e dançar ocorrem em vinte poemas. A primavera e o verão, a presença do jardim e do mar, o clima anoitecido, a associação de todos estes elementos aos movimentos da dança têm uma funda repercussão no sujeito enunciador: um mesmo estremecimento no interior da natureza e dentro do ser. O tom de exaltação mistura-se ao clima de vaguidão e à recorrente atmosfera do segredo, àquilo que fica por dizer. Tudo é etéreo, diáfano, difícil de apreender:
8 Site “Sophia de Mello Breyner Andresen no seu tempo” (Selecção, conteúdos e organização por Maria Andresen de Sousa Tavares), Biblioteca Nacional de Portugal - https://purl.pt/19841/1/
A cada livro novo seu que leio, reata-me o antigo encantamento da minha primeira juventude, quando descobri a sua poesia. Nunca lhe contei? Uma tarde, na ilha da Madeira, tinha eu a idade maravilhosa que já não sei, descobri numa livraria o seu ‘Poesia’. E foi um dos mais belos encontros da minha vida. Não há aqui literatura: tudo isto é verdadeiro. [8]
Em 1960, num ensaio intitulado «Poesia e Realidade», saído na revista Colóquio, Sophia afirma isso mesmo: «um homem que precisa de poesia precisa dela, não para ornamentar a sua vida, mas sim para viver». Termos muito próximos destes são usados por Francisco Sousa Tavares, numa crónica de memórias publicada no Diário de Notícias, de 11 de Abril de 1993:
Sofia não foi, nem nunca seria, a ‘menina bem’ que até fazia versos, mas pelo contrário era um poeta que suportava a vida e queria encontrar nela a mesma claridade e harmonia que a poesia lhe dera. […] Sofia, poeta nos gestos e na vida, a quem Arnold Haskell perguntou como e porquê não foi bailarina, e trazia consigo o ritmo brando da valquíria abandonada. Tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens.
A poeta é figura e figurante dos momentos epifânicos revelados no poema. Como as entidades gregas que a povoam, divinamente se entrega para celebrar a beleza e a harmonia, mas também para viver o segredo e a sombra que os quadros sugerem. Entre os jardins e o mar, emerge a figura autobiográfica e, com ela, sobreleva um complexo processo ontológico: um viver por dentro a poesia para a tornar visível no despojamento, na ascese, na entrega.
Nestes primeiros livros observa-se em muitos poemas uma homologia entre os movimentos da dança (associados à vivência do tempo) e os ritmos do verso. Em «Dia de hoje» (Dia do Mar) o verso acolhe essa equivalência, quando no poema se apontam as horas: «Em que há por vezes súbitas demoras / Plenas como as pausas dum verso».
Ó dia de hoje, ó dia de horas leves
Bailando na doçura
E na amargura
De serem perfeitas e de serem breves.
E encontramos também em Dia do Mar exemplos que nos dão conta do modo como a organização estrófica revela o movimento, visível numa ordem gradual. Veja-se o poema “O jardim” composto de três estrofes: a primeira de quatro versos, a segunda de seis e a última de nove versos. Os desalinhos reflectem-se homologicamente no modo como os versos dão conta do envolvimento do sujeito poético no bailado. Conforme se avança na leitura, as estrofes crescem. À medida que Maio avança, com ele avança o bailado mas também os desalinhos («os fantásticos desalinhos / Do meu bem e do meu mal»), que são simultaneamente as dobras dos versos («E no seu bailado levada / Pelo jardim deliro e divago, /…)».
Nos três livros publicados na década de 1950 (Coral, No Tempo Dividido, Mar Novo), retomam-se muitos dos aspectos associados à dança, observados nos dois livros anteriores, como a atmosfera diáfana e inapreensível, associada ao forte poder sugestivo das composições; e, como nos primeiros livros, continuamos a deparar com o segredo, a perda, a ausência, o desastre – tudo o que é inquietação e que não desaparecerá na fase mais solar. Assinale-se, no entanto, o profundo sentido vitalista nas referências à dança, que impõe frequentemente uma vivência liberta: a exaltação do mar e da luz, mesmo quando a morte está presente no vivo.
Destaco em Mar Novo, de 1958, livro que fecha um ciclo, outro verso que se impõe como legenda: «Aérea e dispersa eu dançava», palavras que recortam, em sentido forte, a figura biográfica, e reconduzem aos retratos da personagem descrita por escritores e amigos conviventes como Miguel Torga, no romance Vindima, Eduardo Lourenço ou Agustina. O poema intitula-se «Dia» e noutra estrofe retomam-se ecos deste verso, reafirmando a equivalência entre dançar e viver (“Aérea e dispersa eu vivia /No colo das viagens que inventava”).
Sophia é vista como sílfide, numa identificação proposta por Eduardo Lourenço, quando fala da poesia etérea, «espécie de voo sem matéria» (Antologia, Moraes, 1978); ou como nereide, convocada noutro lugar, ao falar da «criatura à parte, etérea, alheada, a futura ‘nereide’ por Pascoaes invocada» (Público, 10 de Julho de 2004). Podemos falar de Sophia como grega, musa, deusa, bailarina. Em poesia e em vida, secretos e precisos nomes a rodeiam. Da exigência frontal, da precisão e clareza, que moldam a sua personalidade e o seu universo, nasce um tom livre que é a libertação das palavras, a dança dos versos. Vejamos o que diz Sophia, em entrevista datada de 2000: «Eu acho que o melhor momento da escrita do poema é quando as pessoas começam a sentir as palavras moverem-se sozinhas» [9]. Agustina capta o retrato em movimento: «Penso nela como poeta grande que é e na fuga, no sentido musical, que foi a sua vida» (Estudos em homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen, Faculdade de Letras da U. do Porto, 2005). A dança e o fazer poético estão, em Sophia, intimamente interligados. A dança e as sílabas. Na resposta a uma entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho, sobre o diálogo com o poeta João Cabral de Melo Neto, Sophia diz o seguinte: «‘Mas não falávamos de Deus, nunca falámos de Deus’. De que falavam? Com lenta precisão, Sophia resume: ‘De ciganos, de bailarinas e de sílabas’». [10]
9 “Maria Maia entrevista Sophia de Mello Breyner Andresen”, Jornal de Poesia, Lisboa, 10 de maio de 2000; in http://www.revista.agulha.nom.br/1mmaia1.html.
10 Cf. http://www.triplov.com/sophia/poemas/alexandra_coelho.htm
Não é por acaso que a dança aparece associada às sílabas, na evocação que Sophia faz das conversas com o poeta brasileiro. Em Sophia, o poema radica fundamente na ressonância musical, na dicção nítida do canto. O poema acolhe os versos precisos num equilíbrio medido de imagens e sons. E o ritmo é movimento. Como na dança.
A vários níveis, com a escrita do Livro Sexto (1962), define-se um limiar, o anunciar de um momento de viragem no trajecto da poeta. A referência à dança comporta aqui uma diferença nítida. No livro em que surge a opção pelo abandono da pontuação, encontramos um poema que leva mais longe os movimentos que se vinham anunciando:
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu próprio cavalo
Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia
O texto intitula-se “A vaga”. Uma linha expressiva faz-nos ver o emergir do próprio poema, nas sucessivas dobras no verso. A vaga como a dança são reveladas num movimento simultâneo que é o dos próprios versos, que vemos a crescer (estrofe de 3 versos + estrofe de 7 versos). Poderíamos encontrar a melhor interpretação para o poema nas palavras da autora, noutro lugar, O Nu na Antiguidade Clássica, quando Sophia fala de um objecto distinto: as esculturas de Scopas que mostram os «corpos arqueados e vibrantes onde o ritmo e o contorno clássico equilibram um tumulto de vaga e de dança». Em Coral (1950), líamos uma espécie de máxima de vida:
Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos.
A partir do Livro Sexto a dança é incorporada no poema, ao mesmo tempo que passará a ser claramente tematizada como movimento do outro. E isto acontece de uma forma muito mais perceptível nos livros a seguir a Navegações (1983). Quadros exteriores, como, por exemplo, a reconstituição de um mundo a partir de um objecto artístico em «Os biombos Nambam», no livro Ilhas (1989) (procedimento muito diverso daquele que ocorria na «Goyesca», de Dia do Mar); ou os contornos de quadros captados em espaços longínquos, como a bailarina goesa em O Búzio de Cós e outros Poemas (1997).