SOPHIA E AS ARTES

A DANÇA

CARLOS MENDES DE SOUSA

Universidade do Minho

III

Há um entendimento fundamental, em toda a poética de Sophia, que se apoia na crença do poder da linguagem para efectuar uma consubstanciação com a realidade.
            Ao falar do primeiro encontro com a Grécia, quando descobriu Homero, a poeta afirma: «a Grécia é um mundo que sempre criou em mim uma certa voracidade» (Le Matricule des Anges, 1997). Desde muito cedo a Grécia começa por ser vivida no mesmo plano das coisas comungadas e assimiladas, lugar fundador no modo de encarar a poesia.

Ainda que em Sophia exista uma reinvenção do mundo grego, é preciso literalmente pisar esse chão e mergulhar nesse mar para afirmar essa mesma reinvenção num plano de maior aprofundamento amplificador. Talvez por isso se possa considerar O Nu na Antiguidade Clássica como uma das mais instigantes artes poéticas da autora. Podemos ler aí a todo o momento magníficas projecções da sua poesia. Como não colocar, por exemplo, ao lado dos versos do primeiro livro («A perfeição nasce do eco dos teus passos»), uma passagem sobre «O príncipe dos Lírios», do palácio de Cnossos, que com «seu passo dançado reina num mundo primaveril onde floresce o espanto e o descobrimento do mundo onde estamos».

Reprodução do Príncipe dos Lírios

Desde o primeiro livro até ao Livro Sexto que a afirmação sobre o ser se manifesta dominantemente à volta de uma nomeação dos «outros seres», «o teu ser» «o meu ser». Já no Livro Sexto, no poema «A pura face», lemos estes versos que revelam uma amplificação: «Ó ser de todo o ser de quem nem sei / Se podes ser ao menos pressentido?»; e em Geografia (1967), fala-se da «música do ser» (poema «Bach Segóvia Guitarra») e do «canto do ser inteiro e reunido» (poema «Ali, então»).
              Numa carta dirigida a Jorge de Sena, datada de 18 de Novembro de 1969, ao agradecer Peregrinatio ad loca infecta, fala também de si: «De qualquer maneira sinto-me muito heideggeriana». E mais à frente:

Eu sou mais alucinada do que tu: creio que é possível que o nosso ser coincida com os seres. E se assim não acontece é por erro nosso porque não estávamos suficientemente atentos, e algumas vezes porque, por falta de fé dum momento, não ousámos acreditar no que reconhecíamos.

Mas a figura do mergulho de olhos abertos decorre sobretudo de um efeito de assimilação do mundo, uma absorção que prefigura uma totalização, como acontecia no poema «As rosas», de Dia do Mar, lido a partir do testemunho da autora, 44 anos depois da publicação deste livro, numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos, em 1991. «[…] Há um poema que diz ‘Quando à noite desfolho e trinco as rosas’. Isto é absolutamente verdade: eu ia para o jardim da minha avó colher rosas, a minha avó já tinha morrido e era um jardim semiabandonado, colhia camélias no Inverno e rosas na Primavera. Trazia imensas rosas para casa, havia sempre uma grande jarra cheia delas em frente da janela, no meu quarto. E depois eu desfolhava e comia as rosas, mastigava-as… No fundo era a tentativa de captar qualquer coisa que só posso chamar a alegria do universo, qualquer coisa que floresce. // Eu sou bastante fenomenologista. Acredito que o fenómeno mostra o ser».
            Lembro ainda o embate revelador no belíssimo poema «As grutas», de Livro Sexto: «Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento».
            No fundo, o que está em causa é sempre a questão da escolha entre dois caminhos, como acontece num conto à volta da dança, a «História da gata borralheira», texto estruturado em torno de dois bailes:

– Estas noites assim não a assustam?  

– Assustar? Porquê?  

– Tanto azul, tantos brilhos, brisas, perfumes, parecem a promessa de uma vida deslumbrada que é a nossa verdadeira vida. Mas, ao mesmo tempo, há nestas noites uma angústia especial – há no ar o pressentimento de que nos vamos despistar, nos vamos distrair, nos vamos enganar e não vamos nunca ser capazes de reconhecer e agarrar essa vida que é a nossa verdadeira vida.  

Em “O Minotauro” revemos o mesmo efeito revelador, que é uma forma de conhecimento. A “única substância” é a via de acesso à decifração de si própria e ao conhecimento do mundo. Sob a superfície clara das coisas do dia, onde se busca a proporção, a unidade e a ordem, pressentem-se, escondem-se as sombras. No poema, é com Dioniso que a dança se executa:

Nenhuma droga me embriagou me escondeu me protegeu  

O Dionysos que dança comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro  

Mas cresce como flor daqueles cujo ser  

Sem cessar se busca e se perde se desune e se reúne  

E esta é a dança do ser.  

As sombras dançam e, com elas, agita-se a turbulência, agitam-se o tumulto das palavras e a fúria das coisas, agitam-se os desertos e os desencontros. Mas é aí mesmo, nesse perturbado ruído do mundo, a dança de Dioniso, que se reconhece o ser inteiro, vivido e existido através do espanto. Este também é o lugar do poeta, como disse Sophia em 1967, num texto intitulado justamente «Hölderlin ou o lugar do poeta»: «A poesia cada vez mais é para nós aquilo que Hölderlin ensinou: mestra do ser, conhecimento que precede todo o conhecimento, escolha que precede todas as escolhas» (Jornal do Comércio, 30-31 de Dezembro de 1967).

*

Num impressivo depoimento, Richard Zenith dá conta de uma conversa com Sophia, em 2001. Agora a impossibilidade de dançar faz com que o gesto se projecte no movimento dos dedos que fazem oscilar as pétalas das rosas na jarra: «Olhem como dançam!», diz Sophia. A referência à dança, no passado, que já tinha ocorrido em outros depoimentos, é aqui absolutamente iluminadora: «Quando era mais jovem eu dançava, sozinha em casa, os versos que escrevia – sabia?» (Relâmpago, nº 9, Outubro de 2001).

      A imagem da poeta que dança os seus próprios poemas tem reflexos dignos de nota que se prendem com a assunção romântica do viver em estado de poesia, mas também com o profundo sentido rítmico que anima toda a sua obra.

      Mais do que a prática obsessiva do poeta artesão, que de edição para edição incessantemente refaz os versos publicados, apurando-os em novas e irreconhecíveis versões (e ainda que no processo de composição da poeta exista esse apuro formal muito vivo), na sua obra vamos encontrar sobretudo a dominância de uma prática que pressupõe mudanças, trânsitos, deslocações, que se prendem com movimentações de outra ordem: a recorrência de processos de montagem, em especial nas contínuas colagens e retomas, em cortes ou acrescentos, de versos ou de poemas intocados.

      São muitos os movimentos que captam a livre e intensa movência coreográfica. Desde o início, o ritmo está ligado a uma particular atenção às sonoridades, às ressonâncias do poema (a este aspecto Sophia referiu-se com frequência); mas decorre igualmente de um admirável manuseio da variedade e diversidade da disposição estrófica. Importa lembrar o modo como nos poemas dos primeiros livros se organizam núcleos, como as estrofes se fecham em unidades, como os versos seguem uma linha melódica que desemboca na pontuação final. E importa lembrar como progressivamente se solta a respiração do poema até ao apagamento da pontuação. Por isso, em Sophia, é preciso ver completamente para ouvir, e ouvir completamente para ver. Uma ordem criativa e libertadora move o poema. O ritmo, como sopro invisível da música que anima o poema, ao lado da precisão escultórica, proporciona o equilíbrio (o recorte clássico) que alimenta o fascínio interminável que esta poesia continua a suscitar.

      Na poesia de Sophia, as Ménades dançam. Como no «combate esculpido nas métopas do templo» («Um poeta Clássico», Geografia ), como no «friso arcaico» (Dual), onde «medida amor e fúria se combinam», nesta poesia revela-se tensivamente a vida e o seu profundo sentido rítmico. É essa a dança que a poeta dança inteira diante de si: a dança do ser.

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Angélica Salvi e Vuduvum

Joana Providência